Para lá da continuidade
Joseph Ratzinger era, provavelmente, o mais próximo colaborador de João Paulo II. O seu grande cúmplice. Mas quererá isso dizer que Bento XVI será apenas um mero continuador do Papa que o antecedeu? Dificilmente. Primeiro, porque o mundo e a Igreja mudaram muito nos últimos 26 anos e as prioridades e preocupações do novo Papa são muito distintas das que Karol Wojtyla enfrentou quando iniciou o seu longo papado. Depois, porque havia uma espécie de divisão do trabalho entre o anterior chefe da Igreja de Roma e o até ontem prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé que é irrepetível. Mas para compreender a natureza dessa partilha é essencial olhar para o que pode manter-se e para o que pode mudar no Vaticano. É que, como disse Rocco Buttiglione, o polémico filósofo católico que era muito próximo de João Paulo II, numa entrevista dada já há alguns anos, "o Papa tem o dom da síntese, por causa das suas funções, e o cardeal Ratzinger o dom da polémica", e agora o homem das polémicas terá que trabalhar a capacidade de realizar sínteses - o que já deve ter começado a fazer tal a rapidez com que os seus pares, apesar de todas as diferenças, o elegeram.
Algo também deve ser retido: Bento XVI é um homem de uma determinação ímpar, rara inteligência e capacidade argumentativa, tendo deixado claras, na homília que fez antes de o conclave se iniciar, quais as suas principais preocupações. "Possuir uma fé clara, seguir os ensinamentos da Igreja, é classificado com frequência como fundamentalismo", disse perante os 115 cardeais eleitores. "Em contrapartida, o relativismo, isto é, o deixar-se levar "para aqui ou para ali por qualquer vento ou doutrina", parece a única atitude aceitável nos tempos que correm. Toma corpo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que deixa tudo ao critério do próprio ego e dos seus desejos." Este é o estado de coisas que quer combater e por isso foi ontem genericamente definido em todas as televisões como o expoente da ortodoxia.
Aparentemente esta linha de combate contra a "ditadura do relativismo" é impossível de vencer numa Europa onde a religião parece ocupar cada vez menos espaço, onde o individualismo radical e o consumismo, a vontade de obter instantaneamente gratificação e prazer, estão a substituir os valores de contenção e sacrifício pregados pela Igreja. Mas será mesmo um combate sem esperança, sobretudo agora que deixou de ser servido pelo carisma de João Paulo II e pela sua capacidade de atrair a juventude? Ou será que esse vaticínio está tão errado como os que menorizaram a capacidade do Papa polaco para derrubar o comunismo? Em 1978 esse também parecia um combate perdido...
É também redutor limitar a personalidade do novo Papa aos seus combates em defesa da Doutrina da Fé. Convém recordar quer as suas origens - nasceu numa Alemanha prestes a cair no pesadelo nazi, filho de um pai polícia que preferiu demitir-se a servir o regime, foi alistado com 15 anos e desertou com 16, partindo dessa experiência para abraçar a vocação religiosa -, quer o seu percurso - com apenas 35 anos impressionou Roma durante o Concílio do Vaticano II com as suas capacidades teológicas e as suas posições liberais, tendo depois evoluído para o campo conservador ao confrontar-se com as consequências da contracultura pós-Maio de 1968 -, quer ainda o significado do nome que escolheu, Bento XVI.
Na verdade o Papa que viveu a I Guerra Mundial - que logo classificou como o "suicídio da Europa" - teve como preocupações centrais a luta pela paz e a evangelização. A primeira, mal entendida e mal sucedida na época, não impede que hoje os historiadores reconheçam que a sua proposta de paz de 1917 já contivesse o essencial dos 14 pontos de Woodrow Wilson, o mais idealista dos Presidentes americanos do século passado e impulsionador da Sociedade das Nações. A segunda preocupação levou-o a promover, num mundo onde a maior parte das nações ainda eram colónias, a pregação por missionários locais contra a tradição dos missionários enviados das potências imperiais.
O que é que isto pode significar? Que a sua rápida eleição pode ter ficado a dever-se à associação entre a sua defesa intransigente da doutrina católica, algo que por vezes incomoda a Igreja nos países do Norte mas é melhor aceite em muitos países do Sul, e uma abertura ao que realmente preocupa os episcopados desses países, com destaque para a pobreza.
Não surpreenderia pois que este Papa já idoso - acabou de completar 78 anos - se revele como Bento XVI alguém bem distinto do estereótipo construído em torno de Joseph Ratzinger. Na sua última entrevista à televisão italiana defendeu que a juventude não é uma questão de idade e, mesmo que muitos augurem um mandato curto e de transição, isso não implica que venha a ser menos importante. Basta recordar que João XXIII tinha 77 anos quando foi eleito e deixou o legado que deixou.