José Gil Alguém esperava um bestseller?
Portugal Hoje - O Medo de Existir atingiu a 7ª edição em quatro meses. É um bestseller inesperado porque livros de filósofos não costumam estar nos tops de vendas. Como é que, subitamente, o homem da garagem o abre para ler? Em Évora, José Gil ouviu dizerem-lhe: "O seu livro dá vontade de devorar". Por Kathleen Gomes
José Gil hoje, filósofo superstar? Talvez não tanto assim, mas onde quer que ele vá esperam-no pequenas multidões. Por exemplo, Évora, quinta-feira à tarde. Alguém fez a contagem, por alto, das pessoas que terão passado pelo amplo salão de um palácio ducal para assistir a um debate sobre o último livro do filósofo, Portugal Hoje - O Medo de Existir: 180.
Em quatro meses, o livro atingiu a 7ª edição. As tiragens aumentaram quase dez vezes mais: a primeira edição foi de 1500 exemplares, a última, actualmente nas livrarias, é de 12.500. Tudo somado, são 38 mil exemplares, e há nova edição prevista para o final de Maio, coincidindo com as feiras do livro de Lisboa e do Porto. "Só em Março, teve quatro edições", diz Francisco Vale, editor da Relógio d"Água. Portugal Hoje está nos tops de vendas das livrarias, de norte a sul, seguindo de perto os sucessos menos inesperados dos últimos livros de Dan Brown ou Gabriel García Márquez. "Vende valentemente", confirma-se na livraria O Navio de Espelhos, em Aveiro; "continua a vender imensamente", dizem-nos da livraria Leitura, no Porto.
omo é que o livro de um filósofo se tornou um bestseller? Foi também a pergunta que José Gil fez, quinta-feira, no debate organizado pela livraria Som das Letras. "E eu pergunto-me: "O que é que eu fiz?" Porque o livro me ultrapassou... Ultrapassou no âmbito de pessoas que atingiu." Mais tarde, quando o microfone circular entre a assistência, uma mulher dirá: "O seu livro dá vontade de devorar."
Portugal Hoje não é um romance, embora José Gil tenha escrito um, O Cemitério dos Desejos (1990). É uma reflexão crítica e aguda, em 140 páginas, de um Portugal contemporâneo (com o que lhe resta do salazarismo), à luz dos seus comportamentos, mentalidades, afectos. É um livro, segundo António Guerreiro, crítico literário do Expresso - que participou no debate em Évora, a par de Olivier Féron, professor de Filosofia da Universidade de Évora - com "intuições fabulosas que têm a ver com a sociedade portuguesa", e algumas delas têm sido mais visíveis e mediáticas do que outras. Como a tese de que, em Portugal, a inveja é um sistema.
Guerreiro disse ter "alguma dificuldade em dizer aquilo que o livro é", mas ensaiou uma explicação para o seu "percurso mais ou menos fulgurante": "uma espécie de doença ideológica que existe em Portugal, que é uma enorme vontade de encontrar definições para a nossa identidade".
A leitora que acima se confessava devoradora há-de dizer a José Gil: "O seu livro fala daquilo que muitos de nós pensamos, mas muitas vezes não temos coragem de dizer. Porque dizer alto pode magoar alguém..." Um professor da Universidade de Évora provoca a gargalhada geral: "Duas pessoas que leram este livro disseram-me "tu é que o devias ter escrito..."" Gil, visivelmente entusiasmado com as reacções, remata o gag: "Se me tivesse dito isso há uns meses..." E o professor a quem disseram que ele é que devia ter escrito este livro acrescenta: "Qual é a virtude que encontrei no livro e de que gostei muito? É o poder da revelação."
Mas não há-de ser sempre assim, há quem aproveite para dizer que não se revê no discurso de José Gil sobre Portugal. "Os seus óculos não são os meus óculos", diz um homem na assistência.
"Várias vezes me acusaram, certos críticos sobretudo, de eu entrar no habitual gesto português da auto-flagelação", afirmava José Gil. "Indo ao ponto de dizer que é por isso que o livro tem sucesso - porque os portugueses gostam de se auto-flagelar. Acontece que isso me afligiria se fosse verdade. Recebi muitos telefonemas, e-mails, etc., em reacção ao livro e a certas entrevistas que dei. E todos eles insistiam num ponto: "Temos de fazer qualquer coisa!" Há qualquer coisa que provoca uma reviravolta no leitor. Talvez seja uma das pequenas virtudes do livro, o facto de trazer à tona uma série de fenómenos que vão perturbar um certo regime de anemia que funciona e circula em Portugal."
O leitor garagista
De manhã, por cálculo de probabilidades da Câmara Municipal de Évora, que cedeu o espaço, foram dispostas 40 cadeiras no salão do Palácio D. Manuel, onde decorreu o debate de quinta-feira. Os organizadores pediram mais, e tiveram mais 80. Não chegou para sentar toda a gente. Segundo Francisco Vale, o êxito de Portugal Hoje "não se deve avaliar só pelas tiragens, mas pelas solicitações, que são imensas, da presença do autor", de feiras do livro a convites de livrarias, "que são às dezenas".
"Quando eu chego, já não me admira que haja muita gente", diz José Gil ao PÚBLICO, referindo-se à afluência de público que tem encontrado nas apresentações do seu livro. "Agora, isto tudo parte de uma surpresa muito grande que foi o pequeno êxito da edição. Isso não esperava de maneira nenhuma."
Francisco Vale diz que Portugal Hoje é o livro da Relógio d"Água que "está a vender mais" e que só houve três casos semelhantes na história da editora: Sul, de Miguel Sousa Tavares, O Sexo dos Anjos, de Júlio Machado Vaz, e Adeus Princesa, de Clara Pinto Correia. Um livro de viagens, um ensaio sobre sexualidade, um romance. Até agora, as obras de José Gil publicadas na Relógio d"Água - nove, antes de Portugal Hoje; até Junho, será editado um novo livro, Sem Título: Escritos Sobre Arte e Artistas - tinham vendas "relativamente discretas", sem ultrapassar a segunda edição. O editor salienta que o último livro "é muito diferente", com "uma linguagem mais acessível". Outra das causas do êxito, sublinha, foi "a conjunção de vivermos um período em Portugal de grande perplexidade em relação a um impasse político e económico". Gil também reconhece que "o momento político e os actores políticos ajudaram".
Há uma mesa no local do debate com seis pilhas de Portugal Hoje - que vão encurtando ao longo das duas horas e meia - e livros anteriores de José Gil, que ainda ficará cerca de meia hora a dar autógrafos. Anabela Teixeira, co-responsável pela Som das Letras, nota que a procura, na sua livraria, tem sido feita por leitores "de todo o género", desde estudantes e "massa académica" a pessoas que desconhecem o autor e se limitam a pedir "aquele livro sobre Portugal". "Sente-se que houve um passa-palavra", conclui.
"O facto de haver várias edições significa que as vendas ultrapassaram o pequeno círculo português de letrado culto", constata Gil. "Vê-se que muitos dos compradores são pessoas que não estão habituadas a ler. Tenho visto pessoas em cafés que têm profissões que não têm nada a ver com os livros, com a cultura. São pessoas fora do âmbito do pequenino meio cultural que nós conhecemos. Olhe, o garagista leu o meu livro. Não tenho nada contra o garagista, mas em princípio o garagista não lê ensaios do Eduardo Lourenço." É real, o garagista? "Não é só metafórico."