Ainda o mito de Catarina Eufémia
No PÚBLICO de 26 de Março, na crónica "Não vai dizer mal do senhor doutor, pois não?", Helena Matos tomou algumas frases de uma polémica que vem tendo lugar no blog "Estudos sobre o Comunismo" a propósito de um trabalho de mestrado centrado no "mito" de Catarina Eufémia. Dando-me como exemplo da "enorme disponibilidade de alguns investigadores para responderem "esteja descansado" a todos aqueles que, por diferentes razões lhes têm pedido, exigido, mandado ou sugerido que não digam nada que ponha em causa a imagem a que eles tiveram acesso em privado ou construíram laboriosamente", a colunista insinua, no mínimo, que por ingenuidade propago eu própria o "mito". Compreendo Helena Matos. Centra-se na propaganda, acerca da qual escreve que "para fazer história precisa de histórias". Não é esse o meu ponto de vista, como investigadora. Como lembrava alguém, por mais que uma galinha tente chocar pedras, delas não sairão pintainhos. Entendo que toda a propaganda emerge de um contexto e, quando a abordo, laboro sobre ele; se se torna eficaz é porque existem razões fundas para que o seja, e vale a pena estudá-las. Para compreender a situação decorrente do assassinato de Catarina Eufémia - que, reafirmo, é o dado fundamental da questão, secundarizando as reabordagens do caso - há que perceber a realidade dos campos do sul, num tempo longo, que a engendra. Um regime fundiário que conduzia a que a quase totalidade dos habitantes estivesse arredado da propriedade, centrada nas mãos de muito poucos, convivendo sazonalmente com a fome, subsistindo em condições de miséria que são, por vezes, reconhecidas mesmo nas monografias produzidas por proprietários, permite-nos entender a assunção de um nível do "nós" por parte de muitos desses assalariados rurais. Mais, que se vissem no espelho de uma igual que fora assassinada.
Escrevia no blog - e reitero aqui - que há que discernir entre o fundamental e o acessório, a lana caprina. Uma coisa é o nível da propaganda, do regime, ou do PCP. Outra o da inegável realidade. Terei de me repetir: Catarina Eufémia foi, objectivamente, uma assalariada rural alentejana que foi assassinada pela repressão salazarista. Que fazer para que entenda que a pletora de discursos em torno do facto não consegue alterar esta realidade objectiva e fundamental? Objectivamente, também, posso escrever que foi o PCP que dirigiu, desde pelo menos a reorganização nos anos 1940, as lutas nos campos do sul. Posso indicar fontes, passíveis de ser cruzadas, umas da repressão, outras - escritas e orais - sobre os que se opuseram, foram presos, torturados e mortos. Torna-se ainda, necessária, em todas as circunstâncias, uma cuidadosa crítica das fontes. No contexto sul, como vários investigadores já demonstraram, o PCP constituía em múltiplas povoações um facto cultural, que se cerzia, pela prática dos seus militantes, com a vida de miséria e de opressão a que o regime de exploração da terra e a ditadura salazarista condenavam os homens e as mulheres. Os textos produzidos por esse partido, lidos em voz alta, por vezes, durante as paragens do trabalho, calavam fundo nos que os ouviam por não se distanciarem da realidade que viviam. Se Catarina Eufémia os tocou mais, foi pela proximidade - era, como grande parte deles, uma assalariada que lutava e que, como lhes poderia suceder a qualquer momento, atendendo aos níveis atingidos pela repressão, caíra sob as balas de um elemento de uma força do regime.
Uma coisa é o nível da realidade, dos factos - que, ainda que Helena Matos possa estranhar, se verificaram mesmo. Sobre essa materialidade, essa realidade objectiva que foi o homicídio de Catarina Eufémia, múltiplas poderão ser as reelaborações. Umas poderão até tentar denegá-la ou, como era corrente por parte do regime, conspurcar a moral da vítima ou convertê-la em culpada. Outras, porque os mártires servem a uma causa, poderão sobrepujá- la, acrescentá-la, recriá-la. Aos investigadores cabe a tarefa de se libertarem ou de, pelo menos, limitarem esta ganga que as fontes transportam consigo, quer através de uma adequada crítica, quer pela construção das suas próprias fontes - como fazem os antropólogos, com longas permanências no terreno, cruzando elementos de proveniências variadas que lhes permitem entender por dentro a racionalidade dos fenómenos.
Centrei-me em realidades objectivas. Objectivamente, Dias Coelho foi assassinado; também Alfredo Lima, em Alpiarça; vários outros em Aljustrel, Montemor, Barreiro ou Vilarinho da Castanheira. Objectivamente. Uns eram militantes do PCP, outros não, mas foram todos vítimas de um regime que, por mais que queiram alguns que a história se rescreva, era assassino. Mais, foi assassino até ao fim, seja no estertor final no dia 25 de Abril na António Maria Cardoso, seja na designada "primavera marcelista", em Outubro de 1972, quando Ribeiro Santos foi assassinado por agentes da DGS em Económicas. Não são "histórias". Foi muito claro, objectivamente, que o regime, aquele regime, os matou, através das suas polícias. É a partir destes factos que podemos tornar séria a discussão. Professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa