Habitantes do Rossio não chegam a ser uma dezena
A Baixa de Lisboa há muito que se tornou um deserto. O problema é comum aos centros de muitas outras cidades
Com menos de dez habitantes, o Rossio, em Lisboa, é cada vez mais uma praça pública de ninguém, resultado da ocupação pelo comércio de quase todos os andares e do desaparecimento dos moradores ao longo dos anos.A Praça Dom Pedro IV, habitualmente conhecida apenas como Rossio, é uma das zonas mais emblemáticas da capital, visitada por milhares de turistas, mas quando cai a noite e termina a agitação das lojas, os escassos moradores fecham-se nas suas casas e não se avista ninguém. Segundo dados da Câmara Municipal de Lisboa, a freguesia de Santa Justa, onde se integra a praça, foi a segunda que perdeu mais habitantes entre 1991 e 2001, com uma redução de 39,2 por cento.
Há quatro anos, quase um terço dos cerca de 700 moradores de Santa Justa tinham mais de 65 anos, segundo o Censos do Instituto Nacional de Estatística. Na junta de freguesia estão recenseados 12 habitantes na Praça Dom Pedro IV, metade dos quais com indicação de morada numa pensão no número 18, onde os funcionários afirmaram à agência Lusa não viver lá ninguém.
Os comerciantes contactados pela Lusa apontaram apenas duas famílias, num total de cinco pessoas, a residir no Rossio, mas só um morador se disponibilizou para falar. Com 82 anos, Raul Silva é o mais velho e mais antigo dos habitantes do Rossio, onde nasceu e sempre viveu, no número 93, assistindo à progressiva transformação da praça. "Antigamente vivia muita gente no Rossio porque os últimos andares estavam todos habitados. Agora só tenho uma vizinha no meu prédio", lamenta, defendendo uma alteração legislativa que permita manter os andares mais elevados só para habitação.
"Eu gostava de ter mais vizinhos, mas os senhorios não querem alugar para habitação e preferem o comércio porque ganham mais dinheiro. À noite é um sossego, não há vida, não se ouve ninguém", explica.
Francisco Brito, mais conhecido por Brito Alfaiate, tem há 40 anos uma oficina de costura no Rossio. "Ao fim da tarde, quando as lojas fecham, acaba o movimento das pessoas e isto fica completamente deserto. É por isso que a Baixa se encontra na miséria em que se encontra", lastima. "No meu prédio há quatro casas desocupadas, mas já moraram, só no andar de cima, mais de seis famílias. É uma pena", afirma.
A trabalhar há 34 anos na tabacaria Adamastor, instalada no átrio de entrada do número 2 da Rua Primeiro de Dezembro, junto ao Rossio, Tomé Repas habituou-se a ver passar os moradores e os trabalhadores das empresas que se foram instalando nos andares superiores do prédio. "Ninguém mora neste prédio há mais de dez anos. Lembro-me bem do casal que morava aqui, mas que faleceu há uns quinze anos."
Apesar de não conhecer dados oficiais sobre os habitantes do Rossio, Miguel Noras, director-geral da Associação Portuguesa de Municípios com Centros Históricos, considera que aquela praça é "com certeza o caso mais gritante" entre as zonas históricas, cujo Dia Nacional é assinalado segunda-feira. Para o responsável da Associação, que reúne 135 autarquias, o despovoamento é um fenómeno nacional, provocado pela "prioridade que se tem dado ao longo de décadas à construção nova nas periferias".
"As cidades têm devorado o seu miolo histórico, que fica abandonado à sua sorte. À medida que as cidades vão crescendo, os centros históricos têm cada vez menos gente", uma realidade que, segundo Miguel Noras, aumenta o risco de calamidades e incêndios nas casas vazias. O processo para reverter esta tendência é "extremamente lento", refere, defendendo que a solução passa por uma compensação financeira para reabilitar as zonas urbanas degradadas por cada urbanização nova construída.
Em declarações à Lusa, também a directora da Reabilitação Urbana da Câmara de Lisboa, Mafalda Magalhães de Barros, justifica o despovoamento das zonas históricas com a "opção de construir na periferia, ao longo dos anos".
O actual executivo autárquico não desenvolveu qualquer acção específica para o Rossio, optando por grandes empreitadas de reabilitação na Rua da Madalena, Alfama, Castelo e Bairro Alto, mas admite que a Praça Dom Pedro IV venha a ser uma prioridade. Mafalda Magalhães de Barros adiantou que a câmara está a analisar um pedido de licenciamento para a instalação de um hotel no quarteirão da Pastelaria Suiça, uma solução que a directora considera "interessante para a revitalização económica da praça".
Para o presidente da Junta de Freguesia de Santa Justa, Ramiro Nélson (PCP), é fundamental que a Baixa seja reabilitada através de um programa de incremento à habitação. O mais antigo morador do Rossio, por seu lado, teme ver a praça morrer. "Eu sou o rei do Rossio, nasci lá e é lá que está o meu coração. Além de mim, já não há quase ninguém. Quando eu morrer, isto acaba", afirma Raul Silva.