Portugal, "o medo de existir"?
Pequenos, invejosos, ressentidos, queixosos, e fundamentalmente com medo: medo de arriscar, medo de enfrentar, medo de não estar à altura. A análise de José Gil, no seu livro Portugal Hoje, O Medo de Existir, é arrasadora. Será falsa? Não é, e, no entanto, fecho o livro com uma sensação de mal-estar. É que apesar de certeira, a análise de José Gil não é estimulante: vira-nos para dentro, para o nosso umbigo, puxa-nos para baixo, incentiva a autoflagelação tão ao gosto nacional. A própria corrida ao livro, o interesse que despertou são, em minha opinião, reveladores dessa complacência algo mórbida com os nossos defeitos, em vez de procurarmos as ideias e os caminhos de transformação.
Dir-se-á que para haver transformação tem de haver conhecimento, autoconhecimento. Mas o problema na análise de José Gil é semelhante ao que por vezes sucede com alguma psicanálise: as pessoas passam anos a tentar entenderem-se a si próprias, a analisar e a explicar os mínimos detalhes do seu comportamento, do seu passado, da sua infância, sem nunca conseguirem alterar e transformar realmente a sua vida, para além de geralmente culparem os progenitores. Porque a essência da transformação individual ou colectiva, mais do que olhar infinitamente para si próprio, mais do que procurar culpados, reside na vontade de mudar, na procura de instrumentos para mudar. É isso que o livro não faz.
Nas "Notas finais", José Gil sente a necessidade de explicar que o tema do seu livro não é Portugal mas "um ou dois aspectos dessa entidade vasta ...", e que "seria mais interessante, sem dúvida, mas também muito mais difícil, descobrir as linhas de fuga que em certas zonas da cultura e do pensamento já se desenham para que tal aconteça". É verdade, mas, mais do que a escolha do ângulo de abordagem da sociedade portuguesa, é a forma extática, não dinâmica, como o faz que torna a sua análise essencialmente negativa.
Tomemos, por exemplo, a questão da "não inscrição", questão recorrente no livro e, de facto, essencial. Em Portugal, diz José Gil, nada se inscreve, na história ou na existência individual, "nada tem realmente importância, nada é irremediável... tudo entra na impunidade do tempo". Tem razão e esse é um dos aspectos mais negativos da nossa atitude geral. Mas José Gil atribui essa característica à irresponsabilidade legada pelo salazarismo: "Foi o salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade - reduzindo-nos a crianças, crianças grandes, adultos infantilizados." Aqui o salazarismo funciona como o pai todo-poderoso, impedindo a criança de crescer, o que, apesar de não ser falso, nos encerra no círculo fechado de um conflito de ordem filial. Porque afinal, morto e enterrado o regime salazarista, por que razão não nos libertámos dele?
A questão da não-inscrição, que eu entendo como a ausência de marcas deixadas pelo tempo e pela história, pela ausência de transformação das consciências pela vida, como o vento que apaga os sulcos na areia do deserto, está mais relacionada, em minha opinião, com a situação de Portugal no espaço e no tempo - para não falar no facto de que, no mundo actual, todas as sociedades são, por excelência, sociedades da não-inscrição: a urbanização, o desenraizamento, a destruição de laços ancestrais, de autoridades e valores tidos como imutáveis, conjugados com a voragem da vida quotidiana e o império absoluto da actualidade são, entre outros, alguns elementos decisivos dessa não-inscrição.
A situação periférica de Portugal, que nos manteve longe dos grandes conflitos mundiais que moldaram a consciência colectiva europeia e a sua identidade, é um elemento determinante no desenvolvimento da não-inscrição: tem a guerra o mesmo significado para alguém que não a viveu no seu próprio território? Como falar no Holocausto a um jovem que não tem um avô, um parente ou um vizinho que possa testemunhar? Por que havemos de nos preocupar em tomar posição sobre os grandes problemas da actualidade, o terrorismo, a Constituição europeia, o grande Médio Oriente, as mudanças climáticas..., se difusamente sabemos que a nossa opinião conta pouco, tem pouca relevância prática? Em Portugal, a participação nos grandes debates internacionais parece sempre ter algo de abstracto, de importado e não genuíno: a sua necessidade não vem normalmente de dentro, mas sim de fora. E assim se vai gerando a indiferença, terreno de eleição da não-inscrição.
Mas será isto inevitável? Uma espécie de fatalismo? Não me parece. Acredito que, hoje, essa atitude é mais uma consequência da ausência de definição de um projecto político claro para Portugal, da ausência de definição do papel de Portugal no mundo, do contributo que, mesmo pequenos, mesmo periféricos, podemos dar, se conseguirmos reinventar a nossa vocação. A democracia, a liberdade e o desenvolvimento foram aspirações profundas durante décadas. Mas hoje Portugal está sem um rumo claro: a democratização está incompleta, a entrada na União Europeia não trouxe o desenvolvimento esperado e o país questiona-se: para onde vamos? Quem somos? Entre o Portugal "do Minho a Timor" e o pequeno anão diluído na Europa, qual é o nosso caminho?
É essa, em minha opinião, a raiz actual do "medo de existir" de que fala José Gil. O medo relacionado com a falta de confiança no futuro, com a insegurança numa Europa que se vira para leste e num mundo que se afigura ameaçador e no qual temos dificuldade em nos reconhecer e, sobretudo, em nos situar.
Mas o questionamento é sempre positivo e gerador de mudança. Portugal chegou a um ponto de não retorno: de certa forma, atingimos um limite difícil de ultrapassar. Há como que um consenso na sociedade portuguesa de que "isto" tem de mudar e é esse, em minha opinião, o sentido da maior afluência às urnas nas últimas eleições. Acredito que existem as forças para isso: longe dos holofotes mediáticos está hoje uma jovem geração extraordinariamente bem preparada do ponto de vista profissional, de horizontes vastos, liberta de medos e de angústias existenciais e que quer contribuir para o seu país.
Por isso, sinceramente, não creio que as jovens gerações se reconheçam no retrato que José Gil faz dos portugueses.
Provavelmente, Portugal está a mudar e nós não sabemos...