O travelling no tempo
Serge Daney é uma memória pessoal das mais importantes, que a conversação não versava apenas sobre este ou aquele filme mas também sobre os tópicos: o que significa o cinema para cada um, que desejo move, como proceder no acto crítico e no direito de escolha
Otravelling de Kapo ainda. "Entre os filmes que nunca vi, não estão apenas Outubro, Le Jour se lève ou Bambi, há também esse obscuro Kapo. Filme sobre os campos de concentração, rodado em 1960 pelo italiano de esquerda Gillo Pontecorvo, Kapo não deixou marcas na história do cinema. Serei eu o único a nunca o ter esquecido, apesar de nunca o ter visto? É que eu nunca vi Kapo mas, ao mesmo tempo vi-o. Vi-o porque alguém - através das palavras - mo mostrou. Esse filme, cujo título, como uma senha, acompanhou toda a minha vida de cinema, só o conheço através de um curto texto: a crítica que fez Jacques Rivette em Junho de 1961 nos Cahiers du Cinéma. Era o número 120, o artigo chamava-se Da abjecção." (Serge Daney)Também eu nunca vi o filme, embora saiba que Rivette me ensinou algo - que, para meu desgosto, reencontraria aproximadamente numa sequência de A Lista de Schindler de Spielberg. Mas dois textos que não têm cessado de me acompanhar. O de Rivette: "Vejam em Kapo o plano em que [Emanuelle] Riva se suicida, atirando-se sobre o arame farpado electrificado: o homem que decide fazer, nesse momento, um travelling para reenquadrar o cadáver em contra-picado, tendo o cuidado de colocar a mão erguida num ângulo preciso do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo dos desprezos" (e como ele me ocorreu, por exemplo, perante Dogville), que tem em contraponto a afirmação de Godard, "O travelling é uma questão de moral". E "O travellling de Kapo", o texto de Serge Daney publicado já postumamente no nº4 de Traffic, revista por ele fundada (incluído na Revista de Comunicação e Linguagens, nº23, O que é o cinema?) e que abre também o livro-entrevista com Serge Toubiana, Persévérance.
Serge, uma memória pessoal também, entre uma primeira vez em que de facto conversámos, em Novembro de 82, em Paris, depois de uma projecção de Ana, com António Reis, Paulo Branco e Jean Narboni, até ao Festival de Locarno em 91, igualmente as quase derradeiras páginas do diário de bordo que é L"Exercice a été profitable, Monsieur - Serge Daney é uma memória pessoal das mais importantes, que a conversação não versava apenas sobre este ou aquele filme mas também sobre os tópicos de que convirá não nos esquecermos: o que significa o cinema para cada um, que desejo move, como proceder no acto crítico e no direito de escolha.
Um outro texto ainda, ou antes a nota de abertura ao texto no número inaugural de Traffic: "Regressam pois as questões agridoces que parecia que já não mais nos seriam colocadas. Por exemplo: o cinema é uma arte? Ter-se-á conservado, em todo ou em parte? E que vai suceder do que nele amámos? E de nós, que nos amámos indevidamente através dele? E do mundo que ele nos prometeu e de que nós deviamos ser os cidadãos"?
"O cinema é uma arte"? E porque regressa essa questão? De algum modo pela perda da própria noção no processo da sua consensualização. Ou nos termos em que Daney formulou a interrogação: "A Arte morreu, viva a Cultura? Estamos talvez no fim de um processo, de uma espécie de braço de ferro encetado no decurso dos anos 60 entre a arte e cultura. Em 1968, muitas pessoas da minha idade viveram isso de forma reactiva e ambígua. Via-se na arte uma outra religião, bem superior à velha porque muito mais emancipadora e via-se na cultura um empreendimento de recuperação dessa emancipação pelo Capital. Ao mesmo tempo - estranha contradição - éramos pelo acesso de todos aos bens culturais. Finalmente foi a Cultura que ganhou e no seguimento dos Barthes, dos Bourdieu, maníacos semiólogos, sociólogos, animadores culturais, jovens lobos, publicitários e especialistas em comunicação puseram-se a balizar o campo económico da cultura". Políticas, bens, públicos e consumos culturais, matérias de relevo por certo; e no entanto...
No consumo generalizado e des/subjectivizado, na intermediação constante entre os produtos e a anónima entidade que dá pelo nome de "o público", onde pára O filme, a possibilidade de Um espectador e a mediação de Um discurso crítico? Questões que talvez sejam genéricas, mas que em nenhum campo específico é mais insistente que na crítica de cinema - a não ser talvez na pop, com a sua lógica de produção do hype, de manufacturação de conceitos e de reciclagem de trash, com o qual aliás a recensão das estreias cada vez mais se confunde.
Falava Daney de uma conversa com Wenders: o constrangimento maior do Marlboro Man é o de nos impedir de olhar a paisagem sem a ver como uma imagem de publicidade. Isso é o "visual", característico de uma cultura, oposto do acto de mostrar que é o cinema. Modelada pela publicidade, uma imagem supõe outra imagem e sucessivamente, um sistema de reenvio, comutação e troca. Reverso do processo, na minha experiência de espectador: porque há filmes-anúncio que logo à primeira visão sei que já conheço todo aquele filme e outros que ainda assim me suscitam? O que toca em mim? O desejo justamente, na singularidade entre um espectador e a promessa de um filme.
Daney era um extraordinário "passador", que pelo seu saber, experiência e capacidade tinha a faculdade de nos suscitar questões de relação com um filme, do desejo de o ver ou do direito de o recusar. No Libération, depois dos anos nos Cahiers du Cinéma, o seu cansaço foi também um modo de enunciar o estado crítico: numa era de mediatização generalizada como é ainda possível uma mediação susceptivel de "passar" a outrém a experiência de um filme?