Conceição Matos A memória incólume
Há muito que se silencia. Muito que se esquece ou que
se apaga da memória. Em 1965, uma mulher foi vítima
de alguns dos métodos de tortura mais cruéis
e humilhantes praticados pela PIDE. Muitas das histórias sobre os abusos efectuados pela polícia política do Estado Novo ficaram no anonimato. Muitas mulheres morreram, outras recusaram--se a contar o que lhes aconteceu.
Mesmo volvidas quase quatro décadas sobre a sua prisão, Conceição Matos, funcionária reformada do PCP,
partido que amanhã comemora 84 anos, rejeita silenciar
o que se passou e conta ao PÚBLICO os dias de tortura.
Mas como reproduzir tamanha violência?
Os primeiros dias de silêncio. Quando Maria da Conceição Rodrigues de Matos foi presa faltavam somente quatro dias para Portugal se confrontar com um dos maiores traumas vividos durante o Estado Novo: o assassinato do General Humberto Delgado, divulgado pela polícia espanhola no dia 25 de Abril de 1965 após a descoberta (a 5 de Abril) dos cadáveres de Delgado e da sua secretária brasileira, Arajarir. Quatro dias antes, por volta das quatro da madrugada, uma brigada de agentes da PIDE, acompanhada por guardas da GNR, invadiram a casa onde viviam, no Montijo, Conceição Matos e o seu companheiro, Domingos Abrantes (ainda hoje um dos homens mais poderosos dentro do PCP).
Primeiro, bateram à porta. Depois, como se ninguém respondesse, arrombaram-na com um pé-de-cabra, irrompendo pela casa dentro e vasculhando todas as divisões.
Conceição, já desperta e treinada nas vicissitudes da clandestinidade, tivera o tempo suficiente para queimar os papéis comprometedores da organização à qual pertencia, o Partido Comunista Português. Já dentro do quarto, a polícia política apontou-lhe pistolas, ordenou-lhe que pusesse as mãos no ar e que se identificasse. Silêncio.
Conceição manteve sempre o silêncio. Mesmo durante os longos e tormentosos meses de cárcere em Caxias. Mesmo quando regressou à prisão pela segunda vez, em 1968. "Quem vê aquele processo sabe que eu nunca falei à polícia", vai repetindo ao longo da conversa com o PÚBLICO.
Nesse dia (21 de Abril), o tempo parecia estar suspenso. Desde as quatro da manhã que Conceição Matos, detida na sua casa, tentava resistir à angústia da espera: os "pides" aguardavam que o seu companheiro chegasse, enquanto ela pensava no "sinal de alerta" que se habituara a colocar num poste de electricidade localizado próximo da sua habitação. A angústia adensava-se. As horas passavam: seis da manhã, meio-dia, quatro da tarde, oito da noite. Às 22h00, os "pides" levaram Conceição para a sede da polícia política, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa.
Muito mais tarde, ela haveria de saber o que, afinal, acontecera naquele terrível dia. "Por azar", conta, "nesse mesmo dia, o sinal de alerta tinha sido retirado do poste por causa de uma obras". Domingos Abrantes não conseguiu escapar. Conceição só soube o que aconteceu algum tempo mais tarde, quando o destino do seu companheiro lhe foi comunicado através de alguns camaradas, igualmente encarcerados em Caxias.
"Coragem hoje, abraços amanhã"
"Presa pela Delegação em 21-4-1965 por actividades contra a Segurança do Estado, tendo recolhido ao Depósito de Presos de Caxias" - é este o primeiro parágrafo da sua "ficha" da PIDE. O que se segue? A punição de um mês sem receber visitas, o julgamento e a condenação a 18 meses de prisão preventiva, a suspensão de direitos políticos, a proibição de "exercícios ao ar livre". Mas também os valores das "indemnizações ao Estado" e do "Imposto de Justiça" e depois, já em 1968, na segunda prisão de Conceição Matos, a repetição do texto, a reincidência na acusação da prática de "actividades contra a Segurança do Estado".
Em nenhuma frase, em nenhuma palavra deste processo, se vislumbra sequer um fugaz indício do ror de torturas físicas e psicológicas a que Conceição Matos esteve submetida aquando da sua primeira detenção. Ela, que sofreu das piores humilhações infligidas a mulheres presas, que foi espancada, sovada durante vários dias, despojada das suas roupas, obrigada a urinar e a defecar numa sala de interrogatório e a limpar a sujidade com aquilo que trazia vestido.
Em nenhuma "ficha" da polícia política existem menções sobre os maus tratos a que eram submetidos os presos políticos, em nenhum processo consta a diversidade dos métodos de tortura, das pérfidas tácticas utilizadas pelos inspectores, escolhidos a dedo, para "dirigir" os interrogatórios. Tentou-se ocultar a crueldade, alvejando recolher a impunidade num futuro que uns julgavam longínquo, outros inexistente. Mas o tempo passado regressa sempre, ainda que, por vezes, permeável a tentativas de deformação daquilo que aconteceu.
Para Conceição Matos estas memórias permanecem incólumes, ainda que ensombradas por momentos que prefere não reproduzir. Alguns deles foram, porém, reconstituídos em diversos depoimentos (publicados em livros e jornais), expurgados de vestígios de autocomplacência. "Quem vê aquele processo sabe que eu nunca falei à polícia. Apesar de tudo...", afirma, uma vez mais, recordando que foi ainda dentro das celas de Caxias que primeiro lhe elogiaram a resistência. "Coragem hoje, abraços amanhã", responderam uns camaradas, presos nas celas contíguas, quando ela aprendeu a decifrar os toques que costumava ouvir durante a noite. "A primeira frase que decifrei foi "tens um selo que vendas a um camarada nosso" e até hoje não sei qual o significado. Depois comecei também a experimentar uns toques e perguntaram logo quem eu era. Eu disse o meu nome, quiseram saber se eu já tinha sido interrogada, disse que sim e perguntaram "falaste?", "não" e eles responderam "coragem hoje, abraços amanhã"."
Lenga-lenga no recreioApós as torturas a que foi submetida na António Maria Cardoso (ver texto ao lado), Conceição regressou a Caxias - o "depósito", segundo a nomenclatura do Estado Novo. Apresentaram-lhe uma carta que diziam ter sido escrita por Domingos Abrantes. Nela, o seu companheiro rogava-lhe para "trair" o partido. "Disseram-me que ele tinha confessado tudo, mas nunca acreditei nisso." A mesma táctica foi também usada com Domingos Abrantes, antes de este dirigente comunista ter sido sujeito àquilo que diziam ser uma "máquina infalível" - "claro que eram choques eléctricos, eu sabia disso", lembra Conceição. Ambos conheciam bem (alguns) dos métodos de tortura da PIDE. "Nunca acreditei."
Neste retorno para Caxias, Conceição foi colocada numa cela colectiva, onde reencontrou muitas camaradas comunistas. Mas as sequelas físicas e psicológicas daqueles dias de tortura tardaram a desaparecer: nos momentos em que as presas podiam ir para o chamado "recreio", ela nunca se juntava às suas companheiras. Sentava-se num qualquer canto e iniciava uma lenga-lenga imperceptível - repetia vezes sem conta a frase "caixa de fósforos". Lembrava-se apenas que as palavras correspondiam a um qualquer sinal de alerta dentro do partido, mas não conseguia fazer a respectiva associação ao vocabulário da clandestinidade.
Conceição Matos haveria de ser novamente presa em 1968. Regressou a Caxias e ali ficou, em total isolamento, durante dois meses e alguns dias. Só quando saiu é que tomou conhecimento da morte de Oliveira Salazar e da nomeação de Marcelo Caetano. Prosseguiu o seu trabalho junto da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos e quando Domingos Abrantes foi libertado, em 1973, o casal regressou à clandestinidade. Desta vez, para fora do país.
Quando aconteceu a Revolução dos Cravos - ela estava em Paris, ele em Bruxelas - ficou de imediato decidido o retorno a Portugal. Viajaram de avião para Lisboa, juntamente com Álvaro Cunhal. "Vinham também muitos exilados políticos, entre os quais o José Mário Branco. Cantámos tanto..."