Um Sartre raro em Lisboa no centenário de um filósofo "libertador"
No ano em que se celebra o centenário do nascimento do filósofo existencialista, um documentário de 1967, até agora inédito na Europa, veio provar que "Sartre está bem vivo". A Fundação Gulbenkian encheu para ver um retrato na intimidade do mítico casal Sartre-Beauvoir. Por Kathleen Gomes
É um quarto com vista para o cemitério de Montparnasse, no décimo andar. Jean-Paul Sartre dirá: "Gosto de viver alto." Sartre nasceu a 21 de Junho de 1905, mas o centenário do seu nascimento começou mais cedo (a efeméride é dupla: em 2005 assinala-se também o 25º aniversário da sua morte). Numa iniciativa conjunta do Instituto Franco-Português, da Fundação Calouste Gulbenkian e da Embaixada do Canadá, quarta-feira à tarde, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, o Auditório 2 e mais duas salas-satélite encheram-se para ver um documentário até agora inédito na Europa, retrato na intimidade de um par mítico - Sartre e Simone de Beauvoir, sua companheira de cinco décadas -, realizado em 1967, para a Radio Canada. Gente sentada, gente no chão, várias gerações a assistir: no final, o ensaísta Eduardo Lourenço haveria de dar conta dos "dois acontecimentos" dessa tarde - a projecção do documentário e a "assistência, verdadeiramente extraordinária", ressalvando que havia "muita gente jovem" na sala. Era, portanto, inevitável concluir que Sartre teve um "impacto extraordinário sobre o seu tempo e, pelos vistos, continua a ter".
"Sartre está bem vivo", afirmava Madeleine Gobeil-Noël, co-autora do documentário, no debate que se seguiu à projecção - e que juntou, a par de Eduardo Lourenço, o ensaísta Eduardo Prado Coelho e Annie Cohen-Solal, autora da biografia de referência de Sartre, publicada em 1985. Para prová-lo, Gobeil-Noël dava conta do périplo de iniciativas que este ano terão lugar um pouco por todo o mundo - França, Israel, Estados Unidos, Brasil, Japão, Alemanha, China... -, a pretexto do centenário do filósofo existencialista.
É Madeleine Gobeil-Noël quem conduz as entrevistas com Sartre e Beauvoir no documentário de 1967, juntamente com Claude Lanzmann. Lanzmann, autor do documentário de referência sobre o Holocausto, "Shoah", tinha sido amante de Beauvoir nos anos 50 e viria a ser director do jornal de esquerda fundado por Sartre em 1945, "Les Temps Modernes". Gobeil-Noël, por seu lado, era à época professora de literatura francesa na Universidade de Carleton, em Otava, no Canadá e, aos 15 anos, iniciara uma correspondência regular com Beauvoir por quem tinha, dizia anteontem, "uma amizade incomparável".
"Quando se diz Sartre diz-se Simone de Beauvoir", afirma-se no documentário, mas é ele que vimos primeiro, na desarrumação pensante - papéis, livros, um isqueiro - de um quarto com vista para o cemitério de Montparnasse. Sartre, "o escritor mais conhecido e mais controverso do seu tempo", que prepara há dez anos um ambicioso ensaio sobre Gustave Flaubert ("L"idiot de la famille", obra em três volumes, será publicado entre 1971 e 1972), acaba de aceitar presidir ao Tribunal Russell para julgar os crimes da Guerra do Vietname. "Quem é o senhor para julgar?", pergunta-lhe Gobeil-Noël. "Sou quem sou, mas sou qualquer um." Além do mais, diz Sartre, "o intelectual é assim mesmo, mete-se sempre naquilo que não lhe diz respeito."
A Guerra do Vietname tratava-se, segundo ele, da "agressão de um país de 200 milhões de homens, ricos e bem armados, contra uma nação de camponeses", um símbolo do imperialismo americano. A biógrafa Annie Cohen-Solal e Eduardo Lourenço assinalaram a "actualidade" do discurso de Sartre. "Os comentários que ele fez à Guerra do Vietname podiam ser transpostos integralmente para o que se passou e se está a passar no Iraque", afirmou o ensaísta. Prado Coelho notou que, à altura, a denúncia sartreana do imperialismo americano "parecia muito radical" mas que, "tal como é formulada hoje, com reajustamentos, aparece com uma certa evidência e capacidade de persuasão".
Beauvoir, na rua, num dia claro e frio (é preciso esperar por ela para ir à rua), mão em riste a apontar locais de infância nas ruas de St. Germain-des-Près. Beauvoir publicara "O Segundo Sexo" em 1949, colocando-se na vanguarda da emancipação feminina. Perguntam-lhe pelas mulheres, perguntam-lhe sempre pelas mulheres. Beauvoir resiste - "Outra vez?..." - e depois diz que houve "um movimento de regressão", pelo menos em França, "por uma razão muito simples, por estarmos numa democracia burguesa". "À classe burguesa interessa-lhe o "statu quo", interessa-lhe que as pessoas sejam despolitizadas", defende. Permanecendo em casa, a mulher permanece despolitizada e despolitiza o homem, segundo Beauvoir. É por isso que afirma que "a emancipação total deve ser feita através do trabalho", que "a participação política não é o boletim de voto". Acusam-na de ser "mutilada", por lhe faltar uma "experiência capital", a maternidade. "Não se diz de um homem que não tem filhos que não sabe o que é a condição humana, que é um mutilado", responde.
Sartre ao piano (diz-se que tocava todos os dias, duas horas), Sartre ou "Poulou", como lhe chama a mãe de 85 anos, durante o serviço militar, com a sua "cara de soldado de segunda", numa fotografia - a mãe preferia-o assim, mais gordo, e preferia Beauvoir na sua fase mais roliça porque era "mais confortável". Jean-Paul e Simone nunca casaram (ele propôs-lhe casarem, ela recusou), mas em 1967, já levavam quase quatro décadas de vida em comum, ou aquilo a que ela chama "ruminação a dois". Porque é que aceitaram ser filmados, coisa que, por norma, rejeitariam? Beauvoir explica que é um "documento vivo" para os que leram as suas obras e para os que virão a ler mais tarde. E dirá: "Gostamos, desde já, das pessoas que nos virem no futuro."
Por razões políticas, Sartre não permitiu, à altura, que este filme fosse difundido na Europa. Eduardo Lourenço desabafava anteontem: "Quase é de lamentar que este documentário não tenha sido visto há 40 anos. Ter-nos-ia feito muito bem."
Lourenço destacou Sartre como "um verdadeiro libertador", afirmando que "não havia um hiato entre o seu discurso filosófico e o seu comportamento". Annie Cohen-Solal definiu o projecto de Sartre como "uma exploração do mundo através do conhecimento filosófico". A título de exemplo, referiu-se à sua vinda a Portugal no pós-25 de Abril: o seu método passava por "decifrar o presente e atravessar fronteiras", procurando "fecundar a cultura francesa com as culturas que conhecia no exterior".
Lourenço comparou-o a Sócrates - "o filósofo no meio do mundo, o filósofo na rua" -, para, depois, resumir a lição de Sartre: "Não somos seres livres, somos a liberdade mesmo. E foi esta lição que incendiou o mundo."