Tarde e mal
Santana Lopes anunciou, tarde e mal, que não se candidataria à presidência do PSD. Mas aposto que não percebeu o que se passou nem o que lhe aconteceu, e não acredito que duvide do seu futuro político. Nada fez jamais nem sabe fazer fora da política e fora do "sistema" a que apregoa não pertencer
Foi com uma enorme dose de alívio que assisti à derrocada eleitoral de Santana Lopes, que fabricara para si próprio uma inexplicável aura de invencível. Não menos inexplicável foi o facto de muita gente, em tudo o mais perfeitamente normal, ter acreditado no extraordinário mito de que o homem era não só um ganhador nato como um político talentoso e um dirigente dotado de uma visão para Portugal. Como este mito se formou e vingou, eis aqui um "case study" para politólogos, psicólogos e sociólogos; quanto aos historiadores, tenho a certeza de que daqui a uns anos haverá um livro com um capítulo intitulado "As trapalhadas". De Santana, já tudo foi dito. Mas tenho que insistir na anomalia que o seu caso representa para contrariar "teses" que, postas a correr logo a seguir à sua demissão, foram glosadas durante a campanha e ainda repetidas já depois de acabadas as eleições. Uma delas é que o Presidente da República, com esta dissolução, teria alterado o sistema político pelo motivo de que introduzira nele um grau de incerteza que transformava o cumprimento de uma legislatura completa numa interrogação, visto que dependente do capricho presidencial. A outra é que Santana não é o problema do PSD, pois o problema do PSD estaria no próprio partido e não na criatura.
A primeira "tese" seria certa se tivéssemos estado em presença de uma maioria normal com um governo normal e um primeiro-ministro normal. Mas não estávamos. A maioria funcionaria regularmente e até quero admitir que o mesmo se aplicasse aos diversos ministros. Mas não se aplicava certamente ao primeiro-ministro, cujos sinais de evidente desnorte eram quotidianos. Tratou-se então simplesmente de demitir um primeiro-ministro incompetente? Tivesse este sido o caso e estaríamos, de facto, perante um precedente indesejável, pois se reconheceria ao Presidente a faculdade de despedir um governo que ele no seu juízo achasse inepto, independentemente da maioria saida de eleições de que esse governo gozasse. Uma tal prática presidencial equivaleria a desrespeitar a vontade popular e a declarar o voto irrelevante. Sejamos francos: se o PSD e o PP estivessem realmente convencidos de que tinha sido isto que se passara, não teriam suscitado pelo menos um levantamento nacional? Ter-se-iam limitado a murmurar queixumes contra a injustiça do Presidente?
Mas, é claro, limitaram-se a murmurar queixumes porque bem sabiam, como toda a gente bem sabia, que não estivera em causa a demissão de um primeiro-ministro normal a governar normalmente com a sua maioria parlamentar. Santana Lopes foi parar a primeiro ministro pelas mesmas razões por que há pessoas a quem sai a lotaria: por um mero acaso da fortuna. Ainda assim, não foi a mera circunstância de ter sido um homem com sorte que o perdeu. O anátema vinha-lhe de ser um simples chefe de facção; e também, secundariamente, da fraca reputação que tinha junto de muita gente sénior no PSD que há muito o conhecia e o tinha observado, ao longo dos anos e das décadas, exclusivamente ocupado em promover a sua própria pessoa. Não teria sido preciso contemplar o tristíssimo espectáculo que deu no governo para confirmar os seus defeitos e a sua falta de qualidades. Bastou ver a sua passagem pela Câmara de Lisboa, onde não conseguiu resolver um só dos problemas que criou e onde ao fim de um mês já se podia ver o seu estilo inconfundível reflectido na propaganda que espalhou pela cidade. Ainda assim, Jorge Sampaio encarregou-o de formar governo, no que julguei uma decisão acertada tanto do ponto de vista constitucional como político. Constitucionalmente falando, era a solução indicada. No plano político, era preciso dar-lhe uma oportunidade de se legitimar pela competência - porque como chefe de facção não tinha nenhuma outra legitimidade e não era um congresso partidário, programado para o aclamar, que lha podia conferir.
Ora foi precisamente quando Sampaio lhe ofereceu o governo que Lopes revelou que não passava de um gigantesco "bluff". O lutador, o vencedor, o homem capaz de revolver o céu e a terra aceitou ir sorrateiramente para o governo sem passar pela prova das eleições. Outro que verdadeiramente estivesse à altura daquela fama tê-las-ia exigido. Lopes teve medo, encolheu-se, esgueirou-se, ficou-se, e nesse preciso momento mostrou toda a sua falta de convicção, coragem e ousadia; tornou evidente a sua radical banalidade. Depois, a avaliar pela falta de lucidez que tem exibido sem falhas, deve ter pensado que chegava lá e que com muito movimento e muita propaganda, muito charme e muito espectáculo, todos os problemas se resolveriam e ele arrancaria ao país os aplausos a que se habituara nos congressos partidários. Ainda se lembram de quando ele já distribuía ministérios pela província ainda antes de o governo estar formado ? Em apenas quatro meses, Santana Lopes liquidou irremediavelmente a possibilidade de se legitimar pela eficácia governativa. E transformou a governação e o governo numa fonte quotidiana de turbulência, instabilidade e desatino. Criou um estado de anormalidade permanente. Com isso agravou a ilegitimidade de que estava ferido à partida e tornou a sua remoção obrigatória. Podia a maioria - que ele herdara, não ganhara - continuar a funcionar com impecável regularidade. Em São Bento, Lopes encarregava-se de espalhar todos os dias a consternação. Sampaio não interrompeu uma legislatura normal. Pôs cobro, como lhe competia, a um estado de coisas insustentável. É para emergências desta natureza que serve a eleição directa do Presidente.
Vimos um incorrigível Santana, na noite das eleições, com um resultado inferior ao que lhe vaticinavam as empresas de sondagens que queria processar, apresentar-se diante das câmaras de televisão para nos dizer que continuava determinado a "servir a Pátria e o País". A pátria e o país que acabavam de lhe dizer que o não queriam e que pelo contrário desejavam que ele desaparecesse de cena e se remetesse à obscuridade donde nunca devia ter emergido. Levou nada menos do que trinta e seis horas a reconhecer que o ar rareara à sua volta e que já não tinha por onde respirar. Anunciou, tarde e mal, que não se candidataria à presidência do PSD. Mas aposto que não percebeu o que se passou nem o que lhe aconteceu, e não acredito que duvide do seu futuro político. Santana Lopes nada fez jamais nem sabe fazer fora da política e fora do "sistema" a que apregoa não pertencer. De resto, já declarou que nem tinha casa, dando como exemplo de virtude o que não passa de um sinal de marginalidade e incompetência.
Tudo indica que não tirará a conclusão evidentíssima das eleições do dia 20. Essa conclusão não é de que 60% dos portugueses se descobriram de um dia para o outro convictamente de esquerda. Esperemos que o PS não perca de vista que obteve milhares ou centenas de milhares de votos de pessoas que não são socialistas. A conclusão é de que pura e simplesmente a esmagadora maioria dos portugueses não quer ser governada por Santana Lopes. Poucos casos haverá em que a responsabilidade pessoal por uma derrota política seja tão límpida. Ainda assim, nada indica que não vamos ainda vê-lo a regressar à Câmara de Lisboa e a querer candidatar-se à Presidência da República, espalhando em torno desta eleição a confusão estéril em que é especialista. O país aguarda com expectativa a indispensável rehabilitação do PSD como um partido credível, responsável e respeitável. Seria confrangedor vê-lo por muito mais tempo condicionado por um aventureiro. O PSD terá mais problemas, mas Santana é o primeiro deles. Historiadora