Manuel Botelho inédito na Fundação Gulbenkian
Num percurso de 20 anos, a começar pelos trabalhos mais recentes, mostram-se muitas obras nunca vistas do pintor
Há pintores malditos. Depois há aqueles para quem, simplesmente, parece não se ter encontrado um lugar. "Manuel Botelho - Desenho e Pintura 1984-2004", retrospectiva que hoje, às 22h, é inaugurada no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, fala de um caso desses, diz o comissário da exposição, João Pinharanda. "Isso fascina-me, esses artistas que ficam fora dos circuitos de consagração, que estão sempre no limite. O que acontece com o Manuel Botelho é que ele está mal integrado na história da arte das últimas décadas", diz o comissário. A ideia repete-se nas palavras do artista: "Sempre me senti um bocado "outsider". Sempre achei que o meu trabalho não se identificava com o que via à minha volta."
Manuel Botelho nasceu em Lisboa em 1950 numa família de artistas e arquitectos. Cedo, aos 18 anos, participava já em algumas exposições colectivas. Mas a Nova Pintura dos anos 80 apanhá-lo-ia a estudar em Londres e isso seria determinante.
Depois de decretada a morte desta disciplina, era chegado o momento de um regresso em força, com artistas dos mais diversos quadrantes a usarem-na como forma de expressão essencial. Só para, de novo, e rapidamente, se assistir ao arrefecimento desse movimento eufórico.
No que toca a Manuel Botelho, até hoje, e num percurso artístico que começa em 1968 com as aulas do pintor Rolando Sá Nogueira na Sociedade Nacional de Belas Artes, apenas fez um trabalho fora do âmbito da pintura ou do desenho - uma instalação feita a convite do arquitecto Nuno Teotónio Pereira.
"Tem a ver com a nossa identidade, com quem somos e eu tenho muita dificuldade em encarar a arte como algo em que fazemos piruetas e saltos mortais só porque é oportuno nacional ou internacionalmente. Não tenho absolutamente nenhuma matriz, mas, de facto, sou pintor. É assim", diz o artista que se instalaria em Portugal, definitivamente, só em 1995 e que, já num período de recusa da pintura, ficaria "numa marginalidade muito evidente", diz Pinharanda.
A terceira exposição em museus
Na Gulbenkian, onde Botelho tem aquela que é apenas a sua terceira exposição de sempre em museus, começa-se pelo fim, ou seja, pelos trabalhos mais recentes, com um conjunto de cinco telas e vários desenhos realizados entre 2002 e 2004, em geral obras inéditas, tónica de boa parte da exposição.
Neste momento de arranque, nas pinturas, sucedem-se incêndios, invasões apocalípticas, confrontos entre crianças armadas, aviões em queda ou cenas políticas. Sobretudo no desenho, o traço rarefaz-se, resumindo-se à figuração de um só protagonista (o próprio artista?). A folha abre-se branca.
Desapareceu o preenchimento obsessivo de décadas anteriores, e que se vai encontrando ao desdobrar, para trás, uma pesquisa formal muito marcada pela poética expressionista ou, em certos momentos, pelo cubismo. Mas persiste a densidade e o dramatismo temático, num cruzamento, sempre, entre o pessoal e o social, o privado e o público, num jogo de claro-escuro entre ideias de interior e exterior.
"Há pessoas que dizem que estamos sempre a pintar o mesmo quadro. Acho que isso não se aplica a mim. Mas, de facto, nunca fiz inflexões", diz o artista. Para ele, esta nova etapa de criação é "um retorno", um repescar do que ficara suspenso nos seus desenhos de modelo mais iniciais.
Foi uma reflexão subsequente à exploração da herança de um Braque pós-cubista na primeira metade dos anos 90, um registo que "não permitia traduzir determinada sensibilidade": "Os assuntos da paternidade, da vulnerabilidade humana não podiam ser tratados assim. Não fazia qualquer sentido, se eu fizesse uma coisa truculenta. Seria uma aberração, como se eu estivesse a dizer qualquer coisa aos berros, quando há coisas que têm que ser ditas com suavidade, porque só assim as pessoas ouvem. Tem que haver uma adequação entre o que se diz e como se diz."