Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos

A imagem pública de Clint Eastwood foi formada nos "westerns-spaghetti" de Sergio Leone e nos filmes do inspector Harry Callahan, a que Pauline Kael apôs o epíteto de "fascista". Sobre essas duas considerações, não foi nada óbvio construir uma terceira, a de Eastwood realizador. A razão radicava-se no próprio estatuto de actor-realizador, na medida em que Clint era um ícone, que como tal incorporava as considerações anteriores.

No momento deslumbrante desta crepuscular obra-prima que é "Million Dollar Baby", o primeiro impulso será tão-só o da admiração rendida à mestria de um realizador já plenamente reconhecido de direito próprio. Não faltaram obras ao longo dos últimos 17 anos, desde "Bird", para essa mestria ser já da ordem das evidências - "Unforgiven", "Um Mundo Perfeito" ou "Mystic River" pelo menos. Porque, pelo que me diz respeito, Clint Eastwood é bem mais antiga "inclinação" e foi mesmo um combate crítico que à época me valeu alguns "simpáticos" epítetos (pois se defendia um "fascista"...), não posso senão regozijar-me, e observar com um sorriso irónico que precisamente "Million Dollar Baby" tenha levado à denúncia do "ícone", agora enquanto "liberal", por parte de conservadores americanos como Rush Limbaugh e Michael Medvev (aguarda-se os desenvolvimentos cá no burgo).

E, contudo, penso que são importantes e intrínsecas ao filme as razões por que "Million Dollar Baby" impõe a convocação do passado de Eastwood. De "Citizen Kane" a "À Bout de Souffle", há filmes imensos que são afirmações fulgurantes. Como há outros que só um percurso longamente amadurecido permite, e é esse o caso presente.

Se a iconologia de Eastwood se formatou entre "o homem sem nome" que vinha dos filmes de Leone e o "duro", o "dirty Harry", um e outro foram retomados em filmes dirigidos já por ele próprio. Mas bem cedo na sua obra de realizador começou também ele a desenhar personagens bem mais instáveis e tanto mais surpreendentes no seu indiscutível estatuto icónico - personagens à deriva e em derisão, anunciadas já em dois admiráveis filmes dos começos dos anos 80, "Bronco Billy" e "Honky Tonk Man/A Última Canção".

Seguramente desde "Unforgiven", derradeira grande revisitação do "western" (e não só na obra de Eastwood), o anterior estatuto do "homem sem nome", e como tal de passado desconhecido, foi objecto de uma transfiguração: com o correr do tempo, o passado tornou-se mesmo recorrência obsessiva, fantasmas da matéria cinematográfica - não ocorre isso, por exemplo, em "Mystic River"?

Um das facetas mais extraordinárias de "Million Dollar Baby" é a de ser um filme seco, como um combate de boxe, isento de sentimentalismo, e de, no entanto, ser também conforme à divisa do "manager" de boxe Frank/Eastwood, "Tough ain't enough/Não basta ser duro". Esse "suplemento de alma", se assim o quisermos designar, congrega-se nos corpos e nos rostos, no de Maggie/Hillary Swank, a pupila, também certamente, mas sobretudo no do próprio Eastwood, que aos 74 anos nos oferece uma interpretação como nunca lhe tínhamos visto, e que por si só, vinda de um tal ícone, é um caso à parte.

"Million Dollar Baby" é um filme fora do tempo - em que um homem de um outro tempo se rende à evidência de guiar o treino e os combates da mulher que, os 30 anos passados, não tem já, segundo as regras, corpo para ser "boxeur". É o filme de uma aprendizagem e de um desencanto mútuos, atravessados por outras perdas cruzadas: a da filha a quem Frank escreve e com quem não consegue comunicar e do pai perdido e da mãe que finalmente Maggie tem que renegar.

É um filme em que Clint se expõe, nos seus 70 anos passados, para uma adopção. Frank aceita de vez Maggie como sua pupila no momento em qual, qual pai substituto, o ícone que também foi "o homem sem nome" e a quem agora não basta ser "o último dos duros", atribui àquela o nome com que ela se tornará conhecida nos ringues, "Mo Cuishle", misteriosa designação gaélica cujo pleno sentido filial saberemos no final do filme - tal como saberemos a destinatária da narração de Morgan Freeman.

É espantoso como este filme rima com o admirável "Honky Tonk Man", em que ao lado do próprio Clint Eastwood, como cantor "country" nos tempos da Depressão, figurava o seu filho Kyle. (a idade de Maggie por acaso é idêntica à da sua filha Allison). Se um e outro são relatos de passagem, a natureza crepuscular da obra recente de Clint Eastwood transmuta-se aqui numa melancolia agónica. Bem sei que a referência irlandesa, e mesmo explicitamente a Innisfree, nos fará de novo recordar que, fora do tempo, Clint Eastwood é ainda devedor de John Ford. Mas, de novo neste caso, não se insista nesse "classicismo", quando todas as zonas de sombra, todo esse visível crepúsculo, tomam mesmo a justeza e a secura de uma exposição que abrange matérias tão sensíveis como o abuso sexual de crianças em "Mystic River" ou agora a eutanásia em "Million Dollar Baby".

E perante tão deslumbrantes mestria e sageza, dou por mim a pensar que tive ocasião recente de desfrutar de três obras-primas cinematográficas: "História de Marie e Julien" de Jacques Rivette (n. 1928), "Sarabanda" de Ingmar Bergman (1918) e "Million Dollar Baby" de Clint Eastwood (1931). Dão que pensar, tais lições de mestres.

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