"O verdadeiro problema do islão é a relação entre religião e política"
O sufismo é a via mais profunda da espiritualidade islâmica. Representa o oposto do fundamentalismo, explica Faouzi Skali. Os sufis, e as suas confrarias, desempenham hoje um papel crucial, porque defendem a separação entre a religião e a política, condição para modernizar o mundo islâmico e preservar o próprio sentido da religião. Por Jorge Almeida Fernandes e Margarida Santos Lopes(texto) e Enric Vives-Rubio (fotos)
Faouzi Skali, 52 anos, sufi, antropólogo e professor da Universidade de Fez, em Marrocos, é o fundador do Festival das Músicas Sacras do Mundo e foi eleito pela ONU, em 2001, como uma das 12 figuras mundiais que mais contribuíram para o diálogo entre culturas e civilizações. O seu actual projecto é criar em Fez um centro de diplomacia intercultural e inter-religiosa, aberto a todas as culturas do mundo. É autor de obras sobre o sufismo. Esteve esta semana em Portugal, no Ten Chi, na Várzea de Sintra, a convite do mestre Georges Stobbaerts, para participar no debate "A mensagem espiritual do sufismo e do budo" (as artes marciais japonesas). PÚBLICO - O senhor é um sufi. O que é o sufismo?
FAOUZI SKALI - O sufismo existe em todo o mundo muçulmano, embora esteja pouco mediatizado. É a dimensão espiritual do islão. É a meditação, são os valores, é o comportamento, é a ideia de um trabalho sobre si mesmo para nos transformarmos. Nos campos ou nas cidades, o sufismo desempenha um papel social importante, não só no ensino espiritual, mas também na educação.
O sufismo tem simultaneamente um aspecto comunitário e social e um aspecto muito pessoal, porque é uma experiência que cada um tem fazer por si mesmo. Diz-se no sufismo que a experiência é um gosto, um sabor. Há graus de aprofundamento. É preciso um conhecimento de si para uma pessoa se poder transformar.
Há uma literatura muito vasta, desde há séculos, sobre o sufismo, com epístolas, poemas, contos, narrativas, um património muito diverso e rico, em persa, árabe, urdu ou em línguas do Afeganistão. Por exemplo, antes dos taliban, havia uma presença sufista muito forte no Afeganistão. Depois houve a invasão [soviética de 1979], as reacções, as manipulações. E vieram movimentos como os taliban, que são o inverso do espírito sufista. São uma forma de islão ideológico e exteriorista.
O sufismo fracassou portanto no Afeganistão?
Não. A invasão soviética provocou um tremendo confronto. Cada um tentou manipulá-lo para controlar o pós-guerra. O Irão com o xiismo, a Arábia Saudita e o Paquistão com os taliban. Os movimentos que aspiravam ao sufismo não puderam emergir porque havia forças políticas dependentes de países muito poderosos. [Ahmed] Massoud [defunto líder da Aliança do Norte, opositor dos taliban], por exemplo, era sufi. Havia as confrarias sufistas Qadiriyya e Naqshbandiyya. Ninguém ajudou o país por razões culturais e espirituais, mas por razões geopolíticas. Se o movimento de Massoud tivesse prevalecido, não teria havido a aberração dos taliban, uma cultura totalmente estrangeira ao Afeganistão.
Por que se tornou sufi? As suas biografias dizem que procurou a verdade através da Matemática e da Antropologia, e experimentou até o budismo.
Foi o resultado de uma busca espiritual. Nunca tinha ouvido o termo "sufi" antes de descobrir o sufismo, de ter encontrado o meu mestre espiritual, em Marrocos, numa aldeia do Nordeste, um homem de grande sabedoria, representante vivo da tradição sufista. Em seguida, a minha própria busca levou-me a descobrir a história do sufismo, primeiro no Oriente e depois em Marrocos. Tornei-me um discípulo em 1977, até agora. Não foi uma herança familiar. Recebi uma educação bicultural, ocidental e marroquina. Estudei em Paris. A religião nem me interessava. Só mais tarde comecei a procurar o sentido da religião. E foi através dessa busca, que não nada tinha a ver com o islão, que cheguei a este islão espiritual.
O sufismo representa o princípio da interpretação do Corão contra uma tradição literalista e rígida?
A tradição literalista e rígida, mesmo em Marrocos, é muito recente, vem do wahhabismo, do início do século XIX. Ele poderia ter permanecido um movimento beduíno mas tornou-se muito poderoso devido aos petrodólares e propagou-se pelo mundo inteiro. Como vinha da Arábia Saudita e tinha pregadores por todos os países muçulmanos, muitas gerações pensaram que era isso a ortodoxia. Mas, na realidade, nada tem a ver com a tradição. Por exemplo, em Marrocos, sempre houve uma tradição com dimensão mística. Nunca foi literalista. Há uma multiplicidade de interpretações. O movimento rigorista e exteriorista é recente, não pertence à história antiga do islão, embora se apresente como a ortodoxia mais pura.
Até ao 11 de Setembro, foi o xiismo do Irão e não o wahhabismo saudita que foi apresentado como um "perigo". Porquê?
Houve uma revolução no Irão em 1979. Pela primeira vez no mundo muçulmano, e mesmo sendo muito minoritários face aos sunitas, os xiitas deram o exemplo de que o islão revolucionário podia chegar ao poder. Havia movimentos políticos activistas mas eram reprimidos, como os Irmãos Muçulmanos no Egipto, e não tinham maneira de vir a governar. A revolução xiita tornou isso possível, porque no xiismo, ao contrário do sunismo, há uma verdadeira estrutura religiosa. Há uma espécie de clero, os "mullahs", que estão organizados e podem mobilizar. No sunismo, não é possível uma organização desse tipo. Surgiram depois outros movimentos islamistas com o objectivo de alcançar o poder.
Hoje, o verdadeiro problema no mundo muçulmano é definir a relação entre religião e política. Os sufis tiveram um papel na resistência à colonização, graças à força das confrarias, e hoje desempenham um papel muito positivo porque insistem em separar a religião da política. Dizem que se as misturarmos perdemos o próprio sentido da religião. A religião será instrumentalizada e usada apenas como alavanca do poder. A maioria dos muçulmanos não se identifica com o islão da Al-Qaeda. É uma maioria silenciosa face a uma minoria activista, que tem eco nos "media". A maioria vive o seu dia-a-dia, mas é da minoria que faz atentados suicidas que o mundo fala.
Frequentemente, o que vemos depois de um ataque suicida são pessoas a celebrar nas ruas e não vozes a condenar.
De que parte do mundo estamos a falar? Do Iraque, da Palestina?
Podemos falar do Iraque e da Palestina.
Temos de ser prudentes. Não creio que no Iraque as pessoas festejem os ataques, porque elas são as principais vítimas. Não apoiam os "kamikazes", mas estão desde o princípio contra a guerra e ficam felizes se algo acontece aos americanos. Para as pessoas, a guerra só serve os interesses da América e do colonialismo. Daí às vezes as reacções de satisfação. Por outro lado, estas acções são instrumentalizadas pelos extremistas, para criar um clima de guerra civil.
Nos países que enfrentam ocupações estrangeiras ou governos autocráticos e corruptos, as pessoas tendem a sentir-se atraídas por partidos islamistas?
Não faz sentido haver partidos com ideologia islâmica. É uma forma de enganar as pessoas. É usar o islão com objectivos políticos. É preciso separar completamente a religião e os seus valores do que é a política. Ninguém deve usar a religião para fins particulares. Em Marrocos, por exemplo, está a ser debatida no Parlamento uma proposta de lei que proíbe os partidos de usarem referências religiosas ou étnicas. É muito importante.
É óvio que a pobreza e a marginalização são usadas pelos extremistas. A pobreza não cria extremismo mas o extremismo pode servir-se da pobreza para os seus programas sociais. Quando as pessoas são excluídas procuram os movimentos extremistas para se poderem exprimir.
Hoje, Islão e Ocidente vêem-se mutuamente como uma ameaça e, no entanto, desconhecem-se. Porque são tão fortes os estereótipos?
São fortes porque há problemas políticos graves que alimentam os preconceitos. Por exemplo, o conflito israelo-palestiniano. Não temos as mesmas imagens. Se vemos a CNN temos umas imagens. Se vemos a Al-Jazira temos outras imagens. E no entanto é a mesma realidade. Na Al Jazira vemos crianças [palestinianas] mortas por mísseis e casas destruídas [pelos israelitas]. Na CNN talvez vejamos o inverso. Esta situação, que se arrasta há décadas, alimenta o sentimento de que há uma espécie de guerra contra uma civilização, uma religião, uma cultura. Como não ter o sentimento de que, no Iraque, o objectivo era ocupar um país já que todas as razões oficiais para a guerra eram completamente falsas? Imaginemos o efeito que isso tem sobre as populações. Do mesmo modo, quando os americanos sofrem 3000 mortos nas torres de Nova Iorque têm a percepção de que não podem deixar de reagir. Isto facilita a fractura entre o islão e o ocidente.
Mas é uma fractura ideológica. Na realidade, o islão está na Europa e a Europa está no islão. O muçulmano vive no ocidente. Daqui a 20 anos haverá talvez 60 milhões de muçulmanos na Europa, o equivalente à população da França. Não podemos continuar a falar de ocidente e de islão. Não faz sentido. A única solução é que ambas as partes procurem um conhecimento mútuo. É o que fazemos com o festival de músicas sacras do mundo e com o colóquio de Fez "Uma Alma para a Mundialização".
Esta semana o diário "Le Monde" publicou um "manifesto para o islão europeu", do filósofo Abdennour Bidar, em que ele faz três propostas: 1) refundar os princípios do islão, incluindo as prescrições da lei religiosa e a letra do Corão, à luz dos direitos humanos; 2) privilegiar em todas as circunstâncias, nos actos e discursos, um islão respeitador do ambiente cultural europeu; 3) recusar a ideia de "jihad" (guerra pretensamente santa), "porque o islão europeu será de paz ou não será". Subscreveria este manifesto?
Subscrevo o terceiro ponto, naturalmente. O segundo, assim, assim. Mas o primeiro é quase como se disséssemos que o Papa não deve pensar o que pensa. O Papa pode pensar o que quiser, é o seu papel como chefe da Igreja Católica. Ele pode ser contra o aborto desde que não interfira nas decisões políticas. Ser contra o aborto é a sua opinião espiritual. Mudar o Corão seria como mudar a Bíblia, não faz sentido...
... mas não é tanto uma questão de mudar como de encontrar novas interpretações para o Corão.
Não se pode impor uma interpretação. É como a democracia. Não se pode impor a democracia. Cada um deve seguir o seu itinerário e descobrir a liberdade, sem ter um impacto negativo na liberdade dos outros. Impor-se aos outros é o contrário dos direitos humanos. Estas coisas parecem modernas mas são muito perigosas. É o que está a acontecer no Iraque. Milhares de pessoas morreram sem que isso tivesse sido a sua escolha. Até a democracia e os direitos humanos podem ser indevidamente usados. Temos de ser cautelosos. Não posso exigir aos cristãos que sejam a favor do aborto. O problema é se os cristãos transformarem uma convicção em decisão política. Eu sou a favor da democracia mas contra a democracia ideológica.
Em síntese, é céptico perante o projecto de democratização americano do "Grande Médio Oriente"...
... sim, embora não seja céptico quando ao resultado. Tudo é possível. Mas os fins não justificam os meios. Para mim, deve haver uma coerência entre os meios e o fim, isto é, não posso fazer nada que desrespeite a soberania e a existência do outro. Penso que a noção de democracia deve ser repensada de maneira a que não haja desvios do significado do termo, para não cairmos numa catástrofe. Talvez a democracia chegue depois de uma guerra civil e da devastação do Iraque, mas isso, para mim, não justifica o modo como foi feito. É uma questão de ética, desde o princípio.