A vida aquática segundo Wes Anderson navega em Berlim
"The Life Aquatic with Steve Zissou", que vai atracar hoje em Berlim, é um ovni numa competição que tem sido dominada por filmes com a caução da realidade e de temática política. Parece o filme de um puto grande, e é, seguramente, um filme sobre a persistência da infância
A vida é aquática, segundo o americano Wes Anderson: no seu novo filme, "The Life Aquatic with Steve Zissou", há um navio com uma família improvisada a atravessar águas desprotegidas. Há piratas por aqui, mas o risco é outro, mais sentimental, quando a bordo navegam órfãos emocionais à procura do seu lugar no mundo.Imagine-se um cruzamento entre "Os Tenenbaums", o anterior filme de Wes Anderson, e "As 20.000 Léguas Submarinas", e ainda se está longe de imaginar "The Life Aquatic with Steve Zissou", que vai atracar hoje no Festival de Cinema de Berlim. É um ovni numa competição que tem sido dominada por filmes com a caução da realidade e de temática política. É a última excentricidade de um excêntrico menino-prodígio do cinema americano, uma obra artificiosa, um pouco "over the top" - e vibrante. Falta dizer: é o melhor filme visto até agora na competição de Berlim, que já vai a mais de meio. Saberá o festival compensar um filme tão atípico da sua selecção, surrealista até?
"The Life Aquatic" começa num palco (para que não restem dúvidas quanto à sua teatralidade), onde as personagens são apresentadas uma a uma, mecanismo habitual nos filmes de Anderson. Se em "Os Tenenbaums" (2001), o elenco era introduzido sob a forma de capítulos de um livro, em "The Life Aquatic" a estratégia é o filme-dentro-do-filme - estamos na estreia do último documentário do oceanógrafo Steve Zissou (Bill Murray), versão americana de um Jacques Cousteau e líder da trupe marítima. Zissou já teve o seu tempo de glória, mas os seus documentários nos últimos dez anos têm sido fracassos, o seu produtor tem dificuldades em conseguir financiar-lhe os projectos, e o seu casamento com Eleanor (Anjelica Huston) está em ruína. Mais: o seu melhor amigo e mergulhador foi devorado por um misterioso tubarão jaguar durante a rodagem do presente documentário. E agora Steve quer caçar o predador e matá-lo. Motivação científica: vingança.
Uma família incomumSteve já tem a sua equipa (exageradamente) internacional - incluindo Willem Dafoe no papel de um acólito germânico, ou o brasileiro Seu Jorge (actor de "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles), a dar um temperamento bossa-nova a canções de David Bowie -, mas à aventura vão juntar-se ainda uma repórter (Cate Blanchett) que cresceu fascinada com o oceanógrafo e quer escrever um perfil sobre ele, e Ned (Owen Wilson), um piloto da Air Kentucky que pode ou não ser filho de Zissou - se Zissou quiser ser pai: "Odeio pais. Nunca quis ser um."
Já se vê que a caça ao tubarão é apenas pretexto para um épico com outras ressonâncias. O que move Anderson, e é motivo recorrente na sua filmografia, é a improvisação de uma família incomum, a partir de personagens solipsistas e marcadas pelo falhanço ou pela perda, no centro da qual há sempre uma figura renitentemente paterna.
Da mesma forma, Anderson tem constituído a sua família no cinema convocando alguns dos mesmos actores de filme para filme - Bill Murray, Owen Wilson, Anjelica Huston e um bando de secundários. A segunda vida de Bill Murray começou com "Rushmore - Gostam Todos da Mesma" (1998), segundo filme de Anderson, e é a partir daí que se abre caminho para a redescoberta de um actor sem par - começa a ser redundante dizê-lo -, com a sua comédia amarga (ou vice-versa), quase inexpressiva, destilando cansaço existencial. Só ele podia ser simultaneamente desagradável, egocêntrico, comovente, por vezes patético, e mudar de ideias quanto ao mau da fita (o tubarão) - e, ainda assim, ser chamado herói.
"The Life Aquatic" parece o filme de um puto grande, é, seguramente, um filme sobre a persistência da infância. Não arriscamos muito se dissermos que não há outro como ele em Berlim. Ou nos arredores.