Ser ou não ser... anti-semita

As adaptações cinematográficas de William Shakespeare constituem património fundamental desde os tempos do mudo, em que, inclusive, como primeira experiência, se inscreve uma adaptação de "King John" (1899), peça entretanto "abandonada" pelo cinema, apenas conhecendo versões televisivas destinadas, sobretudo, a um público escolar ou académico. Títulos como "Romeu e Julieta", "Sonho de Uma Noite de Verão", "A Tempestade", "Otelo" ou "O Amansar da Fera" foram glosadas à exaustão, muitas vezes com mudança de género, de contexto ou de época, num complexo mecanismo de variação: "Romanoff e Julieta", de Peter Ustinov, transferia a história trágica para uma comédia de situação, em tempos de Guerra Fria, enquanto o "Romeu e Julieta" de Baz Luhrmann se situava entre gangs rivais na actualidade, com o prólogo lido na televisão; "Sorrisos de uma Noite de Verão", de Bergman, variava sobre "Sonho", numa Suécia do presente; "Yellow Sky" passava "A Tempestade" a "western", fazendo da ilha uma cidade fantasma, perdida no deserto, enquanto "O Planeta Proibido" lia a mesma peça em ambiente de Ficção Científica; "Otelo" dá origem a remota variação em outro "western", em "Jubal" de Delmer Daves; "O Amansar da Fera" passa a "Kiss Me Kate" por obra e graça de Cole Porter, transformando-se em musical teatral e, depois, cinematográfico. Há um "Hamlet" russo, um "Sonho" checo em animação "stop motion", de Jiri Trnka, um "Macbeth" japonês ("Trono de Sangue", de Kurosawa, entre os samurais)... Os exemplos são infindáveis e as posibilidades de metamorfose infinitas."O Mercador de Veneza" não foge à regra, embora seja um dos textos shakespearianos menos visitados pelo cinema, depois de uma certa representatividade antes do advento do sonoro (cinco adaptações entre 1908 e 1922). Depois, apenas uma série de versões para a televisão (com Olivier e Orson Welles a encarnarem Shylock) e três deslocações transculturais: um "Le Marchand de Venise" (1953), com Michel Simon no "maléfico" judeu; um "Mercador..." indiano, "Zalim Saudagar" (1941); um "Maori Merchant of Venice" (Nova Zelândia, 2002).

Para muitos efeitos este filme de Michael Radford (lembram-se de "O Carteiro de Pablo Neruda"?) assume-se como uma "estreia" de um clássico conhecido, em moldes de grande produção: embora aproveitando a lição televisiva, em interiores claustrofóbicos, ainda com dimensão de palco, não resiste a exibir a fotogenia de Veneza, com o Rialto por cenário fulcral onde se encena o conflito entre Shylock, usurário e vingativo judeu (um magnífico e cabotino Al Pacino) e António (um "ressuscitado" Jeremy Irons), o mercador do título, que, depois de cuspir no judeu, lhe oferece como colateral de um empréstimo para servir o amigo, Bassanio (Joseph Fiennes de shakespeariana "má-memória" biográfica - "Shakespeare in Love"), uma libra de carne tirada do local que ao devedor aprouver. Quando o caso vai a tribunal, por incumprimento da dívida, António é defendido por Portia, amada de Bassanio, travestida de jovem advogado.

Só por si, a escolha da peça não pode deixar de perturbar os adeptos do politicamente correcto, pois Shakespeare veicula uma visão do seu tempo e parece não haver volta a dar: a moral da história passa pelo enaltecimento do amor, mas também por um anti-semitismo evidente. Shylock, embora seja o verdadeiro centro do drama, assume-se como um vilão e é castigado sem piedade. O que Radford faz, de forma inteligente, desde logo na legenda do prólogo, é realçar o tratamento injusto infligido aos judeus, confinados ao gueto e insultados como cães. No entanto, e apesar do estrelato de Pacino, não faltará quem, de forma primária, conteste a oportunidade do filme, não entendendo a complexidade da personagem.

Curiosamente, a mais perene memória da peça surge no filme de propaganda anti-nazi, "Ser ou Não Ser" (1941), do insuspeito Ernst Lubitsch, em que um figurante do "Hamlet" sonha com o seu momento de glória, recitando o famoso solilóquio de Shylock (descontextualizado, também, para possuir a força de manifesto contra o Holocausto): "Se nos espetarem, não sangramos?" Esta descontextualização pode servir como chave para compreender o retrato complexo, que Pacino dá, matizando a sua vilania na cena do tribunal com o peso de séculos de opressão e de ignomínia. Por isso, o papel é um desafio para qualquer grande actor, obrigado a apostar em subentendidos, a ouvir e a calar, falando com a fúria de uma "compreensível" vingança.

Uma outra das interessantes interpretações de Radford passa pelo sublinhar de uma relação dúbia entre António e Bassanio, de que não estão ausentes sugestões de homossexualidade. O segredo desta adaptação ambiciosa e, de certo modo, tradicional reside, aliás, nesta capacidade para fornecer pistas subliminares, saber cortar e equilibrar uma visão ortodoxa com fracturas e subtis modernizações. O contraste entre o virtuosismo do trabalho fotográfico, traçando quadros "emoldurados" de Veneza e um olhar negro e angustiado sobre a natureza humana, centrado nos interiores iluminados em impressionante "chiaroscuro", encaixa na perfeição numa possível leitura contemporânea de uma peça polémica e "incómoda". Há alguns efeitos dispensáveis, uma excessiva ligeireza na cena dos pretendentes à mão de Portia, mas, globalmente, serve de versão de divulgação a um texto de complicadas implicações, muitas vezes treslido.

E, depois, há Al Pacino, no apogeu do domínio da técnica de bem-representar.

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