Arthur Miller Morreu o dramaturgo que "escreveu aquilo que sentia"
Considerado um dos grandes retratistas da América do pós-guerra, defendia um teatro acessível ao grande público. Milller será também lembrado por ter sido casado com Marilyn Monroe
Dizia que provavelmente iria ser esquecido porque "99,9 por cento de todas as obras de arte são esquecidas". Mas se a sua profecia não se concretizasse, gostaria de ser lembrado como "um homem que escreveu aquilo que sentia". A crítica, no entanto, reserva-lhe um lugar de destaque na literatura americana. Várias vozes dizem mesmo que algumas peças de Arthur Miller estão entre as maiores do século XX. O autor de "A Morte de um Caixeiro Viajante" (1949), "A View from the Bridge", "As Bruxas de Salem", (1955) e do argumento de "Os Inadaptados" (1961), morreu ontem de cancro aos 89 anos, na sua casa, em Connecticut, Estados Unidos.
Além de ser recordado como um dos gigantes do teatro contemporâneo americano, Arthur Miller ficará na história como o marido de Marilyn Monroe - uma união entre "o maior cérebro americano" e "o maior corpo americano", caracterizou o escritor Norman Mailer. Ela era a "mulher mais triste" que Miller conheceu, segundo o próprio. Retratou-a terna e apaixonadamente em "Os Inadaptados", uma elegia à fragilidade de Marylin, e com azedume em "Depois da Queda" (1964), a sua peça mais autobiográfica, como confessou. Na última obra que produziu, "Finishing the Picture" - estreada no ano passado, começou a ser escrita dez anos antes -, Miller revisita as filmagens de "Os Inadaptados".
Considerado um dos grandes retratistas da América do pós-guerra, a sua escrita enquadra-se na linha do realismo social, escola do qual é uma figura determinante. Aquela que é considerada a sua obra-prima, "A Morte de um Caixeiro Viajante", é de resto uma "machadada" no sonho americano e provocou polémica. "O grande medo americano é o medo de falhar, atravessa todos os níveis sociais", disse ele, que considerava difícil nomear agora um escritor "que represente a América", ao contrário de uma época em "que Fitzgerald, Hemingway ou Dos Passos pareciam representar qualquer coisa no país".
Crítico em relação à Broadway - era "realista, burguês, de visão estreita" -, Miller defendia um teatro acessível ao grande público.
Colocando em palco homens e mulheres à procura de novos valores, reflectindo sobre o materialismo, famílias disfuncionais, conflitos familiares, escreveu as suas peças mais importantes, dizem os críticos, no pós-guerra, embora "A View from The Bridge" e "As Bruxas de Salem", posteriores, também sejam consideradas obras maiores. Esta última peça costuma, aliás, servir de ponte biográfica: embora a acção se passe no século XVII - é uma das excepções na obra de Miller que colocou quase sempre a acção na actualidade - foi considerada uma metáfora da caça às bruxas do mccarthismo, de que Miller foi vítima nos anos 50. Outrora defensor do regime soviético mas sem nunca ser militante comunista, foi obrigado a depor em 1956 perante o Comité das Actividades Antiamericanas: respondeu a todas as perguntas mas recusou-se a dar os nomes das pessoas do grupo de escritores comunistas com quem se reuniu, tornando-se um herói para a esquerda americana.
Miller gostava de Michael MooreQuem leu a sua autobiografia, "Timebends" (1987), como Paulo Eduardo Carvalho, investigador do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras, fica com a imagem de um homem que teve "um trajecto de uma atenção múltipla a todos os pormenores, de uma verticalidade e exigência e de um enorme pudor e delicadeza na forma como fala de Marilyn Monroe". O investigador sublinha a relação "de grande atenção e tensão com a América", de "um diálogo com a sociedade americana que se prolongou até hoje com gestos extremados" e que vão do realizador anti-Bush Michael Moore ao dramaturgo Tony Kushner (autor da peça "Angels in America", formalmente distante da obra de Miller). Miller, que se manteve sempre lúcido, gostou, aliás, de "Fahrenheit 9/11", de Moore e de "Plot Against America", de Philip Roth, que conhecia.
"No pós-guerra, há uma mudança de eixo cultural para os EUA, assistimos a uma explosão cultural, nomeadamente na dramaturgia. Houve, obviamente, antes dele, Eugene O"Neill, devedor do paradigma europeu, mas com Miller temos uma dramaturgia americana a liderar o Ocidente", diz o investigador. "Miller e Tennessee Williams são responsáveis pela renovação do teatro americano; Williams mais poético, mais virado para dentro; Miller, mais voltado para fora com uma aitude social muito evidente".
Hoje pouco encenado - como a maioria dos autores da sua época, refere Paulo Eduardo Carvalho -, tem tido muito pouca presença em Portugal (a última vez que foi encenado foi em 1995, por José Peixoto) . "É um tipo de teatro muito virado para a interpelação dos problemas do seu tempo", interpreta o investigador.
Para o crítico do "Guardian" Michael Billington, Miller "ajudou a definir o teatro americano". O "que é muitas vezes esquecido é que teve de criar uma tradição em vez de a absorver". Mel Gussow, autor de "Conversations with Miller", diz, citado pelo mesmo jornal, "que a força de Miller reside na sua moralidade": "É uma espécie de Ibsen americano. Mas as suas peças também são autobiográficas e é este aspecto pessoal que lhes dá força."
Miller, que tinha influências de Tchekhov e revelou nunca ter visto nenhuma peça de Brecht, dizia simplesmente que a arte da escrita teatral "consiste essencialmente numa manipulação do tempo, tudo deve estar concentrado".