O Quinto Império ontem como hoje

1 -

Portugal, Fevereiro de 2005. Nos nossos cinemas, ou no que resta dos nossos cinemas, se me quiser fazer entender, Bergman, Godard e Oliveira, os três maiores cineastas vivos. Luxo de pobres, ainda por cima mal agradecidos já que uma tal conjunção só acontece uma vez por lustro e cada vez menos gente acorda de noite para a ver. Mas ela é um facto e contra factos só valem argumentos, que, como é óbvio, me merecem menos crédito do que os meus. Também não os vou repetir, nem perder o meu tempo a validar hierarquias. Já não tenho nem idade nem posição social. Vão por mim, ou vão contra mim. Se forem contra, escusam de me continuar a ler.

Só que água mole em pedra dura... Deu-me um certo gozo a chuva de estrelas que acolheu o mais recente Oliveira, vinda de quem veio e de quem já disse o que disse. Os mais benévolos recordarão os operários da 26ª hora (vinte e seis são as longas-metragens de Oliveira), que, aos olhos do Senhor da Vinha, valem tanto como os da primeira. Os mais ressentidos (eu, nestas coisas, não sou nada bonzinho e tenho muito boa memória) sabem que muitos viram e ouviram como Oliveira foi recebido em Veneza em Setembro do ano passado. Quando não os podes vencer... Isso me explica que vos venham explicar agora que "O Quinto Império" é o melhor ou é dos melhores. Não porque o não seja, mas porque não se percebe o critério que levou a arreganhar o dente ou a morder a mão e agora a maviar o sorriso de lascarinho nos lábios. Vá lá a gente entendê-los. Adiante, que se faz tarde e este é um filme de altas horas.

2 -

Na origem, José Régio outra vez. A peça "El-Rei Sebastião", subintitulada "poema espectacular em três actos" e datada de 1949.

Régio foi dos primeiros portugueses a reparar em Oliveira e isso há quase 75 anos, quando se estreou "Douro, Faina Fluvial". Depois, seguiu-lhe com muita atenção a obra que, quando o poeta morreu (1969), era esparsa e se limitava a seis curtas-metragens e duas longas, ao longo de trinta e oito anos e sessenta e um de vida (menos sete do que Régio).

Por seu lado, Régio foi influência maior na obra de Oliveira. Agustina gosta de o recordar "menino entre os doutores", no ciclo próximo que, dos anos 30 aos anos 60, seguiu o magistério de Régio, e no qual ela era ainda muito mais menina do que Oliveira. Os temas da obra de Régio ecoam na de Oliveira e os mestres de Régio foram, através dele, os mestres de Oliveira.

Se, em vida de Régio, Oliveira apenas o figurou, por interposto irmão e sobreposta voz, no documentário de 1965 "As Pinturas do Meu Irmão Júlio" (embora datem também dos anos 60 projectos abortados de levar à tela o romance "A Velha Casa" e o conto "O Caminho"), após a morte do poeta, o cineasta recorreu, várias vezes, a obras dele: "Benilde ou a Virgem-Mãe", em 1975, "O Meu Caso", em 1987, ou a encenação teatral de "Mário ou Eu Próprio - O Outro", feita em Itália, em anos recentes. Outras vezes recorreu a discípulos assumidos de Régio como Vicente Sanches ("O Passado e o Presente") ou Prista Monteiro ("A Caixa" e o primeiro episódio de "Inquietude"). E foi Régio quem o incitou a adaptar "Amor de Perdição" e lhe revelou Álvaro do Carvalhal, o autor de "Os Canibais".

Contra modos e tempos, silêncios e reservas, Oliveira nunca deixou de o proclamar "primus inter pares", valorização atribuída a Fernando Pessoa.

Para me chegar ao filme de hoje, recordo uma citação, a dado passo, de um artigo em que o compara a Pessoa e a Sá Carneiro. "José Régio teria sido (ou é) de todos o menos 'mperialista' ou o mais universalista dos arquitectos do 'Quinto Império', pois que antevisionava um devir que fizesse de cada homem o imperador de si mesmo, à luz de uma religião reunificada, cuja humanização ou 'desumanização' pudesse responder à eterna interrogação: 'Quem és, de onde vens e para onde vais?'"

3 -

Oliveira é conhecido pela fidelidade com que adapta os autores que levou ao cinema. Essa fidelidade existe em relação ao texto de "El-Rei Sebastião," mas neste filme saliento três diferenças que não são de somenos:

a) Ao dar ao seu filme um título diferente da peça de Régio, escolhendo o império contra o rei, (embora mostrando este como protagonista omnipresente), Oliveira interrogou mais o mito do que o homem, seguindo caminhos que ele próprio já havia traçado em "Non ou a Vã Glória de Mandar" (1990) ou em "Palavra e Utopia" (2000). Mas se esses filmes são os que mais ocorrem quando se vê "O Quinto Império", na sua unidade de tempo e espaço o filme de Oliveira que este mais me recordou foi "O Dia do Desespero", consagrado ao final da vida de Camilo. Unidade de tempo e espaço também a há no peça de Régio, mas a concepção espectacular daquela volve-se, no filme, em concepção especular, como se o rei, numa última noite, dialogasse com a própria imagem, revendo desesperadamente a sua vida e só lhe achando sentido na morte que a transfigurará. É Simão, o Sapateiro Santo, quem obriga D. Sebastião a ver-se a esse espelho e a descobrir nele o sentido mortal da sua vida? Será. Mas quem é o Sapateiro, vindo de parte nenhuma e desaparecendo para nenhuma parte, se não a projecção do rei e projecção no exacto sentido cinematográfico, pois que como imagem surge e como imagem se desvanece, tão irreal - ou tão real - como as estátuas dos reis que no final se animam para elevar ao paroxismo da instância onírica a morte do desespero?

Mais soberana liberdade se afirma no subtítulo "ontem como hoje," em que Oliveira arranca ao século XVI, e a um dado momento da história de Portugal e do Ocidente cristão, o messianismo da personagem, para interrogar os messianismos da actualidade e fazer convergir a mitologia cristã com a mitologia muçulmana, em idêntica crença num império global que converta o múltiplo em uno e transforme a última guerra na última paz.

b) A "antecâmara no paço onde habita El-Rei Sebastião", único cenário da peça de Régio, é localizada no Convento de Cristo, em Tomar, hipótese verosímil, já que se sabe quanto foi transformado o edifício henriquino e manuelino por D. João III e D. Catarina, avós de D. Sebastião.

O primeiro plano do filme mostra-nos a severa fachada do convento, imensa muralha escura na noite que o cerca. Depois, enquanto corre o genérico, uma panorâmica muito lenta percorre a celebrada janela manuelina, mas dando-nos a ver apenas o sombreado dos alisares, os contornos da figura humana que suporta os grossos troncos (como não recordar o Pedro Macau da "Viagem ao Princípio do Mundo"?), as silhuetas das cordas, dos festões, da esfera armilar e do escudo de D. Manuel. De novo se volta ao exterior, para uma das grandes ousadias desta obra: o cometa, ou que diabo ele seja, que atravessa o céu, como um dos tantos sinais a que mais tarde o texto fará referência. Três minutos de filme e em toda a noite a vida.

E é ainda no exterior que a voz de um suposto gigante lança a primeira imprecação: "Que estão fazendo de ti os que hoje têm na mão o teu governo?"

Só após essa fala, passamos ao interior, onde, em escuridão quase total, dois moços da câmara, recortados contra a janela, exprimem os seus pavores e assombros. A certa altura, quase imperceptivelmente, entra em cena um novo vulto, de que reluz um fio de armadura, como se ele próprio fosse cometa também, ou morto tornado a este mundo. Só depois se lhes revela e se nos revela como o rei.

Não mais, durante um longo dia e uma longa noite, sairemos do Convento e da Casa do Capítulo dele. A não ser em três momentos capitais: logo no início, para acompanharmos o rei nas visitas tumulares a Santa Cruz de Coimbra, à Batalha e a Alcobaça. Em Coimbra, o plano é cerrado para enquadrar o túmulo de Afonso Henriques, de quem Sebastião quer retirar a espada. Na Batalha - onde o rei vai para beijar a mão do cadáver do "Príncipe Perfeito" -, tudo é visto em contra-"plongées", num plano extraordinariamente luminoso da nave central. Mas o maior mistério vem de Alcobaça. Perdido na profundidade de campo da nave lateral, oposta aos túmulos de Pedro e de Inês, o rei pergunta-se o que veio fazer ali, pois em nada cuida da mísera e mesquinha, nem do rei que por ela se perdeu de amores. Como os gnomos de Wagner, a sua renúncia ao amor exprime-se nas naves brancas que precipitadamente abandona como que desperto de um devaneio.

A segunda "saída" ocorre muito mais tarde, após o crucial contracampo entre o rei e a avó, filmada em grande plano, majestosa e derrotada. Findo o diálogo, o rei acompanha-a por esses dois pisos que D. Catarina encomendou a Diogo de Torralva, até ao quarto dela. Mas, durante o percurso, os corpos transformam-se em sombras e é como sombra que a rainha fica a orar.

E é ela a única, já perto do final, que fica a ver, da janela desse mesmo quarto, a luz e o dia, os frutos e as flores, últimos e únicos sinais de vida deste filme enterrado contra a luz e em contraluz.

c) Na peça, o sapateiro também propõe ao rei um sonho e nesse sonho lhe revela a sua dimensão de rei da morte, rei encoberto, desejado para o mito e no mito cumprindo o furioso desejo que o gerou.

Mas, no filme, sem solução de continuidade entre o segundo e o terceiro acto da peça, não é o tempo mas o espaço que alucinadamente se transmuda durante esse sonho, que é sonho dentro do sonho ou filme dentro do filme.

Precedido por um efeito especial insólito na obra de Oliveira e de beleza fulgurante (a espada que voa e depois rasteja como uma cobra), a instância onírica é discretamente sublinhada pelo grande telão figurando Ourique e que cobre a janela, com as quinas em reverso desse verso. A dada altura (quando o rei sai, para ir rezar), é-nos dada a "real" dimensão do quarto e da sua estrutura. Mas essa dimensão perde-se por inteiro durante o sonho, onde deixamos de saber onde estamos, o que é cenário ou o que é ilusão. Ora as chagas (a bandeira das quinas), ora o mito original prefigurado.

"Todas as paredes tinham sido derrubadas... todas as cortinas afastadas..." "todos os confins da vida transpostos..." diz o Sapateiro. Cá fora o céu estrelado é de papelão e lá dentro a imagem de Cristo humanizou-se (ou diabolizou-se) para rir, como o Cristo de Isenheim, que Buñuel dizia ser a mais terrível das imagens dele. Mergulhado no sonho e na morte, em enquadramentos onde o máximo rigor se alia à máxima liberdade, o rei assume-se como o "Rei da esperança maior que todos os desesperos" e só nesse momento a sua projecção (a única que sempre o tratou por tu) se ajoelha diante dele e diz: "Salve, Rei."

Pode, enfim, nascer o dia. O dia da esperança ou o dia do desespero?

Manoel de Oliveira diz que "este é o meu filme mais esperançoso". "De profundis", não sou eu quem o contradirá. O vento passou, o Espírito soprou e também eu os vi e os ouvi.

Sugerir correcção
Comentar