Alfred Kinsey foi o homem que na América dos anos 40 e 50 lançou os "sex studies" como disciplina académica. Os célebres "relatórios Kinsey", gigantescas tipologias da vida sexual dos americanos, concebidas a partir de vasto trabalho de campo e milhares de entrevistas, tornaram-se objectos clássicos, com repercussões tanto na área científica como na social, sendo apontados como marcos decisivos no caminho para a chamada "revolução sexual" dos anos 60. Kinsey, que se acercou do comportamento sexual humano com a mesma frieza e amoralidade com que se dedicava, por exemplo, à entomologia, foi uma personagem polémica e ainda hoje discutida - sobretudo no que toca a motivações "secretas" e aos métodos empregues no seu "trabalho de campo", vastíssimos inquéritos a dezenas de milhar de indivíduos [ver texto nestas páginas]. Se bem que o valor "seminal" (passe a expressão) do seu trabalho seja um dado adquirido, contemporaneamente ainda se discute a sua fiabilidade e o seu valor científico exacto.
Nada desta matéria mais polémica está ausente de "Relatório Kinsey", filme de Bill Condon, que parece ser um "biopic" honesto da personagem. Mas Condon (que foi, recorde-se, o realizador de "Gods and Monsters", sobre a figura de James Whale, o realizador de "Frankenstein") centra-se menos na discussão dessas questões (sinaliza-as, apenas) do que na exploração das motivações de Kinsey (Liam Neeson) e na exposição da sua "drive" - a associação entre o trabalho do investigador e factores biográficos e psicológicos é constante e em última análise a linha orientadora do filme de Condon.
Mas é um filme sem mistérios, sem "rosebuds": a importância da infância (passada num ambiente austero, sob o domínio de um pai extremamente religioso e violentamente puritano) é claramente exposta como motor da determinação de Kinsey, que - para o filme, pelo menos - vive a sua pesquisa como uma peça-chave da sua "libertação", espiritual mas também física (a descoberta de uma costela homossexual, por exemplo). Talvez tudo seja demasiado claro, talvez a personagem saia um bocadinho sobrecarregada com tanta integração e tanta caracterização - sem ser "hagiográfico", "Relatório Kinsey" tem uma dimensão nitidamente "apologética", confirmada no final quando uma cena-monólogo com a participação especial de Lynn Redgrave (a mulher que se confessa, a um Kinsey descrente em si próprio, ajudada pelo seu trabalho) estabelece o que Condon quer que retenhamos de Kinsey: alguém que, pesem todas as discussões e polémicas, actuou e "tocou" de modo visível a sociedade americana, alguém que se "consumiu" por ela.
De certa maneira, e isso é interessante, Bill Condon filma Alfred Kinsey como protagonista de uma história de "obstinação americana", um visionário de contornos "bigger than life", dotado de um indomável individualismo que mais tarde ou mais cedo vai entrar em colisão com os valores sociais e comunitários. E se encontramos o nome de Francis Ford Coppola no genérico (como produtor executivo) não será só por isso que um dos filmes que vem à memória durante "Relatório Kinsey" é "Tucker- Um Homem e o Seu Sonho" (que como este é um filme que descende, inconscientemente ou não, do grande modelo cinematográfico da "saga individualista americana" que é "An American Romance" de King Vidor). Não é questão de estar à altura desses modelos (não está), mas alguma coisa do movimento deles é retomado, entre uma espécie de ascensão quase (ou completamente) eufórica e o momento do "choque", da queda abrupta mais ou menos anunciada.
Que se conte assim a história de um pioneiro da sexologia, eis o que parece relativamente inesperado - mas a verdade é que este género de "saga" sempre foi um instrumento de observação das contradições da sociedade americana. Em derradeira instância, é ai que Bill Condon quer chegar.