Uma família inglesa

Sem deixar de fazer "realismo britânico", Mike Leigh injecta-lhe um vigor inesperado. O que surpreende, antes de mais, em "Vera Drake", é a sua amplitude, o seu fôlego, a meticulosidade da sua construção. Espécie de pequeno "épico" familiar e intimista, o filme assenta num princípio nem por isso muitas vezes presente: a ideia de que, no cinema, o "realismo" pode ser um movimento mais do que uma espera, uma construção mais do que uma mera recepção. Ou melhor, que o "realismo", normalmente, é isso - mais as vozes, os gestos, os actores, a sua relação com o décor - e o contrário não passa, quase sempre, de um mero macaquear da "realidade". Mike Leigh regressa à raiz do seu cinema - e à mais típica raiz do moderno cinema britânico - e reformula-a: tudo, em "Vera Drake", é artifício e estilização, e não há nisso nada de incompatível com o "realismo".

Para mais, estamos em território de "reconstituição". "Vera Drake" passa-se na Inglaterra dos anos do pós-II Guerra, mais exactamente em 1950. Mas isso é-nos dado com uma enorme discrição e economia - e de resto, são muito poucos os planos de exterior, quase tudo o que se passa entre quatro paredes. De certa maneira, o ponto é mesmo esse: se há filmes que olham para as "fachadas" do lado de fora, e são filmes "de rua" que colocam hipóteses quanto ao que se passa dentro das casas, este toma o ponto de vista do lado de dentro. Estamos lá, do outro lado das fachadas, domínios do segredo e da intimidade, e é a "rua" (como de resto, a "cidade", como genericamente o "exterior") que é matéria de abstracção. É curioso, aliás, constatar que o "espaço público", quando é figurado, é quase sempre um espaço de uma certa devassa da intimidade: um hospital, uma prisão, um tribunal, mesmo (porque não?) um restaurante ou um salão de baile.

Mas disto, dito assim, ainda pouco se percebeu. É preciso explicar a matéria narrativa de "Vera Drake" e dizer que no seu centro está uma personagem - uma pacata mãe de família das classes ditas proletárias - que se dedica a fazer abortos clandestinos. É o potencial "polémico" de "Vera Drake", a história de uma abortadeira (não-remunerada, que faz o que faz movida por um cristianíssimo espírito de ajuda e compaixão) que, após anos de actividade, é levada perante a justiça e condenada a uma pena de prisão.

Seria redutor dizer que não se passa mais nada em "Vera Drake", mas seria igualmente redutor minimizar essa questão. Se Leigh a minimizasse - e a um "discurso" sobre o assunto - não filmaria toda a primeira parte como faz: num constante jogo de paralelismos, equivalências e desequilíbrios onde o mais velho tema do cinema britânico (a persistência do sistema de classes) é posto ao serviço de uma ilustração dos modos de acesso ao aborto. Quem pode, paga, quem não pode, aguenta-se, espera pela caridosa Vera. Toda a primeira parte do filme parte deste jogo de oposições - sem comunicação, claro - como dois compartimentos estanques. A meio do filme, as personagens das "upper classes" são abandonadas, o seu problema está resolvido. E tudo se pode centrar em Vera e no seu reduto familiar.

Quando Vera é presa e a família, até então mantida na ignorância (consta que Mike Leigh manteve os actores também na ignorância, e só lhes revelou o segredo de Vera no momento em que tinha que o fazer), fica a saber da sua actividade clandestina, as reacções divergem. O mais revoltado, o filho, às tantas desabafa com o pai: "Ela nunca nos disse que fazia abortos". E o pai, em pura "britishness", retorque: "Pois não, mas também nunca nos disse que não fazia".

É isso: "Vera Drake" será um filme de "segredos", mas não o é de "mentiras". Alguns acharão irónico que num filme como este o dado mais poderoso seja o que se refere ao desenho de uma família que não só não é "disfuncional" (e está muito longe de outros retratos familiares já esboçados em filmes de Leigh) como mantém uma aura de inexpugnabilidade que a adversidade (a prisão de Vera) só reforça. Há calor naquele larzinho atravancado de "lower class", há conforto e reconforto emocional; na noite de Natal, macambúzia porque Vera aguarda julgamento em liberdade sob caução, o futuro genro agradece: "Sra. Drake, este foi o melhor Natal que tive em muitos anos". Parece piada, mas não é.

O grande segredo de Mike Leigh? Em primeiro lugar, uma direcção de actores que atribui a cada um a sua própria partitura, num equilíbrio que apetece descrever a partir de metáforas musicais. Depois, um trabalho de caracterização que é duma precisão matemática - no caso de Imelda Staunton, dir-se-ia que até a respiração é estudada e trabalhada. Em parte, o realismo de "Vera Drake" é isto: o actor como matéria. Mas matéria são também os espaços e os silêncios, a crueza descritiva dos cenas dos abortos, a "mise-en-scène" envolvente que restitui a intimidade doméstica dos espaços familiares. Ou a cor metálica que amplifica o desamparo de Vera durante o interrogatório e a noite passada na esquadra, ou a luz neutra (e a frontalidade dos planos) do tribunal, tinta para o desenho do julgamento como confronto entre uma máquina e um pequeno ser humano. Em última análise, esta inexorabilidade (o facto de "as coisas serem o que são") é tudo o que Mike Leigh filma, desde o primeiro momento - e a isso também se chama "realismo".

"Se os homens engravidassem, o aborto seria um sacramento"

Inglaterra, 1950.
"Ajudo as jovens quando não conseguem desenrascar-se". Faz abortos? "Não é isso que eu faço. Elas precisam de ajuda". Uma bomba de borracha, uma barra de sabão, um ralador, um frasco de desinfectante, uma bacia com água quente. "Não vou morrer, pois não?". Esta é a pergunta que mais vezes ela ouve. Vera Drake, a abortadeira. 55 anos depois, milhares de mulheres portuguesas continuam a fazê-la. 55 anos depois, abandono a sala de cinema e vejo o tempo suspender-se. 55 anos depois, a lei que criminaliza as mulheres, a humilhação a que são submetidas, permanecem intactas neste país.

Portugal, 2005.
Eu vivo neste país: dados oficiais divulgados pela Direcção-Geral de Saúde (DGS) apontam que três mulheres entram por dia nos hospitais portugueses com complicações geradas por abortos clandestinos. A hipocrisia e a mentira dominam. Por isso, há médicos que insistem em afirmar que estes números são excessivos (vejam-se as declarações de Miguel Oliveira e Silva, do Hospital de Santa Maria, e de Nuno Montenegro, do Hospital de S. João, no PÚBLICO de 28/01) e a própria DGS registou somente 190 casos em 2002, preferindo esconder aquilo que se ouve em surdina nos corredores de todos os hospitais: que centenas e centenas de mulheres dão entrada todos os meses nas urgências com hemorragias, úteros perfurados, infecções diversas. Umas morrem, outras sobrevivem. Que país é este que prefere meter a cabeça na areia? Que país é este onde a humilhação das mulheres é instigada até à estupidez? Onde os efeitos destrutivos de uma legislação fingida atinge tudo e todos? Onde a angústia, o pânico, as dores e o medo acumulam-se ao longo de séculos? Por que não recuperar a palavra de ordem que imperou nos anos 70 na Europa central? "Se os homens engravidassem, o aborto seria um sacramento".

Eu tenho vergonha deste país: o mais que provável governo socialista que sair das eleições do dia 20 vai repetir o mesmo erro - reincidindo num referendo, com a concordância do Bloco de Esquerda e o protesto do PCP -, num claro sinal dos cordelinhos que o putativo candidato presidencial dos socialistas, António Guterres, já anda a mexer no interior da direcção do partido. Foi este o mesmo homem que em 1998, aparentemente à revelia da sua própria bancada parlamentar, firmou com Marcelo Rebelo de Sousa, então líder do PSD, um acordo para referendar o aborto nas vésperas da alteração da lei na Assembleia da República. Satisfez-se a vontade dos homens da Igreja. Que está já a formar exércitos de gente hipócrita que pragueja contra um dos mais elementares direitos humanos: uma maternidade e paternidade conscientes. Se não fosse terrivelmente trágica a intolerável humilhação das mulheres portuguesas, até poderíamos considerar anedótica a frase que Paulo Portas disse no passado domingo, durante a apresentação do programa de governo do CDS/PP, a propósito do referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez: "O direito à vida é um valor da civilização". O que está em causa nesta discussão não é, nunca foi, um direito à vida.

Eu não quero viver neste país: se querem falar de direito à vida, a Igreja mata? O que faz, então, quando proíbe a utilização do preservativo e da pílula (não falo só do aborto, mas também da Sida)? Quando vira a cara e tapa os ouvidos no momento em que é confrontada com as milhares de mulheres que morrem ou sofrem sequelas para toda a vida por terem recorrido a abortadeiras ou ingerido substâncias nocivas? Quando pactua com a criminalização das mulheres, reprimidas e submetidas a uma incomensurável vergonha nos tribunais (metam isto de uma vez por todas na cabeça: ninguém "gosta" de abortar!)? Quando fecha os olhos à existência de clínicas privadas portuguesas que enchem os bolsos à custa de um direito preferencialmente mantido na clandestinidade?

Tal como escreveu a intelectual alemã Alice Schwarzer, também eu me questiono se vivemos num Estado religioso ou numa democracia. Mas acredito, tal como ela, que "questões de fé não são textos legislativos". "Vera Drake" devia ser incluído nos currículos escolares.

Maria José Oliveira

Lisboa, Fevereiro de 2005.

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