A idade da "indecência"
Por entre enésimas reiterações do mesmo modelo do cinema clássico americano, houve quarta-feira, na Cinemateca, uma belíssima ideia de programação, com "Peeping Tom" de Michael Powell seguindo-se "Garganta Funda" de Gérard Damiano. Foram sessões autónomas, mas a sucessão indicava um modo de percepção do cinema relevante do ciclo "Fantasmas do Desejo: Fobias e Folias". O cinema sendo também os modos concretos de recepção, para mim foi uma "sessão dupla"."Peeping Tom" foi um escândalo em 1960, particularmente "à esquerda". Como era possível que o "artístico" realizador de filmes como "Os Sapatinhos Vermelhos" apresentasse a câmara cinematográfica como instrumento de "voyeurismo" levado às últimas consequências, e solicitasse uma inquietante sobreposição entre a perspectiva do espectador do filme e o do "cameraman"-assassino? Com "Janela Indiscreta" de Hitchcock, "Peeping Tom" é dos mais extraordinários exemplos da máquina da visão cinematográfica enquanto pulsão de "voyeurismo" - e como sou um fiel da sala escura, continuo à espera de um dia ter a possibilidade de uma tal "sessão dupla".
A estreia em Portugal de "Garganta Funda", em Julho de 1976, no Capitólio, foi um marco social e cultural: pela primeira vez um filme pornográfico era apresentado em sessões públicas, iniciando um novo capítulo da exibição comercial. Para mais o filme, quatro anos anterior, chegava com a auréola de quase clássico - "Garganta Funda" até fora o nome adoptado para o misterioso informador do caso Watergate... Em 1976 ocorria também "a normalização" após o processo revolucionário. "Garganta Funda", "O Êxtase Sexual de Macumba" e "The Devil in Miss Jones" foram casos de curiosidade, antes da pornografia se cingir aos seus circuitos próprios.
Confesso que essa curiosidade não me solicitou especialmente. De sessões lúbricas guardo muito mais vivas memórias dos príncipios das meias-noites de "terror", no início dos anos 70, no Politeama. E sobretudo a pornografia cinematográfica é hiper-codificada e estereotipada, mecânica e repetitiva. Ou como Barthes escreveu na "Câmara Clara": "A pornografia representa geralmente o sexo, faz dele um objecto imóvel (um feitiço), incensado como um deus que não sai do seu nicho. Para mim não há "punctum" na imagem pornográfica [o "punctum" de uma fotografia é esse acaso que nela me fere]; quanto muito ela diverte-me (e mais: ela depressa me aborrece)".
Não é que a pornografia não seja uma questão importante. A constituição social e política das normas da visibilidade admitida e do que é remetido à "obscenidade" é sempre uma questão maior. Mas se suponho que a pornografia é uma questão importante, e se entendi "Peeping Tom" e "Garganta Funda" como "sessão dupla" é porque há um horizonte tendencial que já Benjamin analisava na fotografia: "cada vez mais impõe-se a necessidade de possuir uma maior proximidade do objecto, na imagem e na sua reprodução".
A seu tempo, Godard elogiou Gérard Damiano, o realizador de "Garganta Funda", por razões que, se bem recordo, se prendem com as insistentes noções godardianas de troca e comércio. Há um "fantasma pornográfico" em muito desejo cinematográfico: fruir de um objecto sexualmente fétiche. Mas a observação de Benjamin ganha mais acuidade hoje, quanto a "sociabilidade" dos cinemas pornográficos, o que quer isso fosse, foi substituída pelos consumos privados e pela internet.
A circunstância de "Garganta Funda" ter passado na Cinemateca foi particularmente interessante. O que mais me afasta da cinefilia tradicional como visão exclusivista do mundo, e modo de debitar mil e um títulos, é o seu impulso onaninista, como o do cinema pornográfico, o que tornou a circunstância particularmente irónica. Mas outras mais houve. Outro Michael Powell, Michael K. Powell, demitiu-se há uma semana da presidência da Federal Communications Comission americana. O final do mandato foi o do signo da "indecência", na sequência da "mamilogate" de Janet Jackson. Esta proclamação da "idade da indecência" configura riscos às liberdades, como se verificou no espectro de uma multa à difusão de "O Resgate do Soldado Ryan", e limita potencialidades da televisão, o "directo" em concreto, nalguns casos tendo sido necessário optar pelo "diferido", para precaver e censurar algum imprevisto. E não se pense que isto sucede só nos Estados Unidos: basta estar atento ao "case study Mário Pinto" e às suas invectivas, como se também só houvesse pornografia nas televisões.
Fizeram as circunstâncias que com "Garganta Funda" na Cinemateca nos lembrássemos que as questões de "voyeurismo" e pornografia, que são reais e importantes, não podem deixar de ser ponderados considerando os condicionamentos provocados pela oferta televisiva - em vez de estar a esgrimir ameaçar censórias. Por ironia, na Folha da Cinemateca respeitante a "Peeping Tom", que deve ter já uns 20 anos, lê-se que "o filme passou a ser uma referência obrigatória por causa de uma temática: a alienação dos media". Assina-o o então crítico radical Manuel S. Fonseca, hoje director de programas da SIC! E a sessão de "Garganta Funda" foi seguida por uma jornalista da TVI, indagando aos espectadores "quais as suas expectativas para o filme?", a mesma estação que recentemente contratou uma "porno-star" brasileira, Alexandre Frota (conhecido por fazer pornos hetero e homo).
Indecência? E então o despudor?