Transformar uma geografia é a ambição de todos os arquitectos
O arquitecto Eduardo Souto Moura vai receber hoje do Presidente da República o Prémio Secil, atribuído ao Estádio Municipal de Braga. É a segunda vez que lhe é atribuído, um feito só repetido por Álvaro Siza Vieira: "É a confirmação, podiam ter-se enganado." Por Isabel Salema
Estamos sobre uma das palas do Estádio Municipal de Braga, a 45 metros do chão. Uma funcionária do estádio abre um alçapão para descermos ao corredor técnico: é total a sensação de vertigem sem o betão da pala debaixo do pés. Mas os vestígios da pedreira original, onde o arquitecto Eduardo Souto Moura começou a escavar o estádio há quatro anos, ainda estão uns bons metros acima.Olhamos para o granito mais negro e tentamos ver a Grécia Antiga ou as ruínas incas de Machu Pichu, no Peru, que o inspiraram. É sempre difícil chegar aos momentos fundadores, mas o resultado é considerado uma das obras-primas da arquitectura dos últimos anos.
No seu escritório junto à foz do Porto, Souto Moura conta a história desta arquitectura que teve a ambição de transformar a geografia dos arredores de Braga, numa entrevista feita a propósito do Prémio Secil de Arquitectura 2003, que hoje será entregue pelo Presidente da República, às 18h30, no Palácio de Xabregas, em Lisboa.
O prémio atribuído pela cimenteira tem o valor de 50 mil euros e é considerado a maior distinção nacional na área da arquitectura.
PÚBLICO - Quando chegou à pedreira, qual foi a primeira ideia que lhe ocorreu para fazer o estádio?
EDUARDO SOUTO MOURA - Quando subi ao cimo do monte para tirar fotografias à implantação original do estádio, vi aquela pedreira muito bonita e a paisagem com os montes ao fundo, que são os contrafortes do Gerês. O enquadramento parecia a Grécia - claro que mais estragado!
Equacionei e disse: "Se isto fosse por aqui abaixo, fazia-se um anfiteatro como os gregos."
Como não percebia nada de futebol e de estádios, achei que aquela pedreira dava os assentos para as pessoas.
Mas pensou mesmo em desenhar os assentos na pedra, escavá-los, como na Antiguidade clássica?
Essa era a minha ideia. Cheguei a perguntar à Federação Internacional de Futebol (FIFA) e à União Europeia de Futebol (UEFA) se podia fazer bancos em pedra ou em betão. Eles disseram que podia, mas que a responsabilidade era minha se um dia alguém levantasse o assento e o atirasse a outra pessoa.
Quando é que desistiu? Logo?
Não. Desisti quando chegou o programa. Tinha a ideia ingénua de que um estádio é um rectângulo verde com pessoas sentadas a ver um jogo. Um estádio para um campeonato europeu tem que ter sala para 1200 jornalistas, restaurantes, sala VIP, bancada VIP, dezenas de quartos de banho e bares.
Percebi que o programa era muito complexo, uma máquina que tinha que funcionar, cheia de infra-estruturas. A partir daí a bancada veio à frente. Nesse intervalo, consegui meter os equipamentos todos. Mas foi o programa que me levou a dizer que não era viável.
Diz que o estádio explora a relação com o sítio, mas houve literalmente uma montanha de pedra que foi desfeita. O que quer do sítio: refazê-lo, torná-lo melhor?
Já estou como o Herberto Helder - a natureza nasceu para ser manipulada. Tudo depende do bom-senso. Vivemos numa época em que a natureza quase não existe. Noutro dia, fui à Andaluzia e fez-me impressão porque não há um metro quadrado natural - a relva são culturas intensivas, o Guadalquivir foi transferido, etc. A natureza hoje vive numa manipulação.
É preciso refazer o sítio?
É. Muda a função, tem outra forma e a arquitectura intervém... O que deve acontecer é perceber-se o yang da natureza para depois o betão funcionar com o ying e fazerem um jogo complementar. Um não dominar o outro.
A arquitectura quer relacionar-se com o sítio, mas ficaram mais de um ano a tirar toneladas de pedra. Isso é um paradoxo?
Não. Pensei bastante nisso. Fui muito acusado. Chegou a ir à Assembleia da República, porque os Verdes levantaram a questão: "Cortaram a montanha, é uma ferida na paisagem!"
Toda aquela montanha de pedra foi demolida e serviu para fazer aquela montanha de betão. O betão, no fundo, é uma pedra artificial.
Uma das suas imagens de marca é o trabalho com a pedra. Tirou de lá toneladas de granito e depois construiu um estádio em betão. Parece uma coisa edipiana com a pedra.
Talvez. Não sei. Correu bem, mas foi muito complicado. Tinha que fazer o projecto em positivo e desenhar o negativo que era a escavação: dar informações para o terreno, porque a escavação foi feita com ângulos, que iam receber os tais andares para a TV, para os VIP, etc.. Passei um ano nisto. É mesmo meter as mãos no sítio.
Depois, houve um acidente: apareceu no meio só terra e a bancada teve que passar a ser muito menos vertical. A pedra depois foi segura com cabos.
Porque é que usou a própria pedra para fazer o betão? Foi uma coisa mental?
Não foi intencional. Estava ali e era mais barato. Escavou-se a pedra e fez-se uma montanha de pedra moída.
Por que é que chama ao betão pedra artificial?
Porque é. No fundo, é arranjar um ligante de pedras.
Diz que o estádio é uma obra de continuidade e não um momento de ruptura. Porquê?
A diferença foi a escala. Nunca tinha trabalhado numa escala tão grande. E a possibilidade de intervir num território e transformar uma geografia. Deixemo-nos de histórias e falsas modéstias - é a ambição de todos os arquitectos. É quase "land art".
E no seu pensamento, essa mudança de escala criou alguma ruptura, agora que passou um ano?
Não, uma ruptura não.
Uma aprendizagem, uma passagem para qualquer coisa?
Senti, porque nunca tinha trabalhado nessa escala, as vantagens da coerência, de desenhar tudo, da pequena à grande escala. Mas senti também o risco do "overdesign". Quis ser o mais anónimo possível, evitar que se sentisse a mão do senhor que está a fazer aquilo, estar-se sempre a pensar nele porque ele está sempre a chamar a atenção.
O máximo da ambição é olharmos para os sítios depois de existir a arquitectura, acharmos que aquilo esteve sempre ali e que se o tirássemos o sítio ficava pior.
Em contradição com isso, quais são os grandes gestos que fez para desenhar o estádio?
A própria ideia do sítio do estádio é que foi o gesto.
E a cobertura?
Não é um grande gesto, partiu da do Siza na Expo. Depois abandonei-a, porque o relvado precisava de luz. Foi uma das questões para que a FIFA me chamou a atenção.
Por isso, primeiro a pala do Siza, depois com as contingências do projecto e a influência das viagens, temos as pontes incas, do Peru.
Como não conseguia a continuidade física da cobertura, quis que se percebesse que é contínuo através dos cabos. Muitas pontes incas, encostadinhas, dá um pouco a imagem.
Qual foi a última viagem que fez para ver arquitectura?
A viagem que me marcou mais, que marcou muito o estádio, foi o Peru, a ida ao Machu Pichu.
Porque é que depois faz a deslocação para a Antiguidade clássica?
Fiz dois estádios, duas maquetas. Primeiro, foi esse do Machu Pichu. O Machu Pichu é a relação do artificial e do natural. Não há nada que seja natural e nada que seja artificial.
No estádio, na bancada poente, foi o trabalho que há quando o betão entra para dentro da pedra. Toda a ideia das escadas ao lado da luz e da água quando chove. Durante a construção, ao ver a luz e a chuva na pedra, consegui alterar a lage da praça cá em cima e abri tudo.
Depois, quando a FIFA, a UEFA e a câmara me disseram que podia fazer o estádio, achei que tinha que perceber a arquitectura grega. Disse: "Eu tenho que ver o Epidaurus." Convenci o grupo de amigos com quem faço viagens a ir à Grécia - o Távora também.
Tirei coisas do Epidaurus. O enquadramento, mas não só. Não sabia, porque os livros não mostram, é que os teatros gregos estão abertos para a paisagem, mas não estão escancarados, é muito subtil e bonito. Têm sempre um bosque à volta, a ideia de limite existe sempre. Dá conforto e segurança, porque são abertos mas fechados.
A outra ideia foi a drenagem dos degraus. Eles inclinam as filas para trás, fazem um canal com uma ligeira pendente e quando a água chega às escadas é desviada.
E a sala enorme com as colunas, cá em baixo?
Foi uma questão de segurança.
Só? Aquele espaço todo?
Se uma pessoa se engana na bancada não pode ir dar a volta à cidade.
Mas podia ter feito um túnel.
É necessário para as pessoas saírem em caso de emergência. Tem o tamanho do campo de futebol, um pouco mais, mas essa dimensão não se consegue imaginar.
O estádio foi sempre uma surpresa. Não tenho vergonha nenhuma de dizer que andei aflito sempre a fazer o estádio.
Foi uma surpresa a dimensão da sala hipostila?
As proporções foram sempre uma surpresa. Por isso, é que teve muitas maquetas. De memória, pensa-se numa sala com trinta metros [quadrados], alguns clientes falam em 60, mas esta é uma sala com 9071 metros quadrados.
Gosta muito desse espaço?
É o que talvez mais goste. Dizia, na brincadeira, que gostava de casar ali as minhas filhas, se elas quiserem casar.
Na fachada, há umas escadas que parece não acabarem. É um erro assumido ou desenhou assim?
Cheguei ao canto do estádio e não sabia acabá-lo. Como não conseguia desenhar a fachada, fiz um corte. É como um bolo, tirei uma fatia e fiquei com as escadas. Funciona um bocado como um elemento escultórico.
Disse que tinha tido imenso medo com estádio. Agora tem menos medo do erro?
Na arquitectura, cada vez tenho mais dúvidas e sinto mais insegurança. Cada vez faço mais maquetas. Há outras coisas que nunca fiz e que estou a tentar fazer.
O que é que nunca fez?
Portas e janelas, fugi sempre. A coisa mais difícil que há em arquitectura é abrir um buraco numa parede.
Por isso, a imagem tradicional da arquitectura.
É, não há nada mais difícil. Anda tudo a fugir a isso, fazem tudo em vidro, texturas, "brise-soleil" e tal. Só conheço meia dúzia de arquitectos que fazem portas e janelas bem. Pode-se copiar...
O problema é que nos falta a terceira proporção, porque os antigos tinham a profundidade. A janela não era uma linha. Quando faço janelas, parece que o muro está a abanar. Faço sempre duas casas: portas e janelas e vidros. Houve uma para um escritor, na serra da Arrábida, que disse que não queria tudo em vidro e que queria uma relação com a paisagem sempre diferente. Aí, tive mesmo que fazer e gostei. É um exercício de máquina fotográfica.