Cenas (invertidas) da vida conjugal

No entanto, o grande interesse de uma ficção como esta não passa, exclusivamente, por uma memória do cinema, como reconhecimento de uma figuração epocal. "5x2" constrói-se à volta de um "gadget" narrativo, contar a história ao invés, do fim para o princípio, arrumando tudo em cinco blocos temporais: a cena do violento epílogo, com o divórcio e a despedida dos corpos, afrontando uma espécie de dolorosa violação; um jantar em família que prenuncia a disfunção do casal; o nascimento do filho, apresentando o casal dos pais separados como modelo para o futuro; o casamento com a infidelidade sugerida e elidida; o encontro em Itália, na solidão partilhada de um qualquer Club Med.

Não que este tratamento "invertido" do aparato ficcional constitua uma absoluta novidade. Pensamos de imediato em possíveis precedentes e vêm-nos à memória filmes tão diversos como o telefilme "Two Friends" (1986), de Jane Campion, sobre a deterioração de uma amizade entre duas raparigas, "Irreversível" (2002) de Gaspar Noé, contando os eventos de uma noite de terror na ordem inversa dos acontecimentos, ou, mais conhecido e influente, "Memento" (2000) de Christopher Nolan, em que o reverso mais radical da acção se cola com a técnica do "flashback".

A "novidade" de "5x2" consiste no enorme rigor com que se delimitam as cinco sequências do título e no verismo do tratamento dos comportamentos das personagens, inscrevendo-as num meio social bem definido, com uma atenção maníaca aos pormenores das caracterizações de classe. Enquanto "Memento" ou "Irreversível" usavam a inversão da acção como uma fórmula, um "gadget", Ozon interioriza o processo, conferindo-lhe espessura dramática, fazendo depender a involução da própria especificidade das personagens e das suas idiossincracias. Uma das ligações mais artificiosas e bem conseguidas passa, por exemplo, pelo uso da música romântica italiana, a começar pelo "lacrimejante" "Una Lacrima Sul Viso" de Bobby Solo. Primeiro, tudo nos parece aleatório, uma espécie de contraponto transalpino à utilização do "Yé-Yé" (e afins cronológicos) em "Oito Mulheres". No final, a "sequência italiana", que desencadeia o romance, traz a subtil unificação, ditando o tom meloso que convém, quase em caricatura, a uma progressiva evolução (ou, melhor, involução) trágica.

Nada nesta complexa tessitura é, aliás, deixado ao acaso: a personagem de Valeria Bruni-Tedeschi possui uma coerência exemplar e desenvolve um grau de vulnerabilidade magoada, que a visão do filme por ordem cronológica acentua; a personagem do marido, Gilles (perturbante e desconcertante na sua violência surda), interpretada por Stéphane Freiss, ganha cambiantes especiais, quando revisitada a partir das suas hesitações iniciais e da sua pusilanimidade; o irmão homossexual de Gilles fornece pistas subterrâneas para a exiguidade dos compromissos e para a brevidade das relações. Como pano de fundo, sempre presente a relação com "Cenas da Vida Conjugal" de Bergman, em versão mediterrânica, católica e permissiva, mas a explodir em fúrias inevitáveis.

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