"Desejo de Europa" muda a Turquia
Pode demorar 10 ou 15 anos, ou talvez menos, mas a Turquia fará parte da União Europeia. A porta foi entreaberta há 41 anos. Depois, foram-lhe feitas exigências, os "critérios de Copenhaga", que muitos esperavam que Ancara rejeitasse. Ao contrário, o "desejo de Europa" desencadeou um movimento de reforma e um realinhamento geopolítico que parecem irreversíveis. 1. Nos últimos meses houve grandes oscilações na opinião pública europeia, da França à Dinamarca, passando pela Alemanha, onde a taxa de rejeição da adesão turca é claramente maioritária. Muitos adversários da adesão invocam argumentos respeitáveis, como os custos financeiros ou a questão da identidade europeia, a que a Turquia seria estranha. Mas o mapa da rejeição dos turcos coincide com o mapa da islamofobia traçado num mega-inquérito publicado pelo "Wall Street Journal" (10 de Dezembro). Mais de metade dos europeus ocidentais (52 por cento), sobretudo no Norte, crêem na existência de um sentimento de rejeição dos muçulmanos nos seus países: na Suécia, Bélgica, Suíça, Dinamarca ou Alemanha, essa opinião varia entre os 60 e 75 por cento. A França é mais subtil: segundo uma outra sondagem, 67 por cento dos franceses rejeitam a Turquia, 34 por cento invocando razões "religiosas e culturais" e 39 "o respeito dos direitos humanos". É interessante verificar que também o anti-semitismo cresceu, tocando 34 por cento dos europeus ocidentais.Jacques Chirac teve de ir à televisão justificar uma opção que é rejeitada por três quartos do seu partido. Na Alemanha, o Governo social-democrata defendeu a abertura das negociações. Mas a oposição cristã-democrata (CDU e CSU) lançou uma campanha de rejeição da Turquia em nome do "patriotismo" alemão e dos "valores dominantes". A presidente da CDU, Angela Merkel, anunciou que se ganhar as eleições tudo fará para bloquear a entrada de Ancara. Mais tempo do que a Turquia para se adaptar à UE, precisa a Europa para se adaptar à Turquia.2. Ninguém poderá negar a identidade europeia da Ucrânia, mas há quem considere que, dados os seus laços com a Rússia, não tem vocação para entrar no "clube". Pela história, a Turquia é Europa. É preciso definir a Europa pelo cristianismo para a excluir.Há argumentos mais pertinentes, como distinguir entre as fronteiras da Europa e a capacidade de crescimento da UE, a falta de meios financeiros ou a oposição entre o reforço da coesão e as vantagens estratégicas. No entanto, esta discussão está em grande parte prisioneira de problemas e modelos anteriores da União, que tem a particularidade de crescer e se estruturar à revelia dos planos.O alargamento ao Leste foi encarado como uma vitória do "grande mercado", querido aos britânicos, sobre a "Europa política", desejada por Paris e Berlim. A Ucrânia mostrou duas coisas. Primeiro, que a Europa dos 25 funcionou como uma entidade política eficaz. Segundo, que a "atracção" exercida pela UE é um poderoso factor de estabilização e democratização das suas críticas periferias, questão central para a segurança do Continente. Depois de atrair e impor reformas segundo os padrões europeus, que fazer desses países? Uma parte da Europa teme a dimensão e o poderio que está a ganhar.3. O Império Otomano foi durante séculos uma potência europeia e iniciou um processo de ocidentalização no fim do século XIX. Depois do seu desmoronamento, na I Guerra Mundial, Kemal Ataturk fundou um Estado-nação e promoveu uma ocidentalização radical por via autoritária. O país passou a viver sob a tutela dos generais, garantes do laicismo e do nacionalismo, e a partir da II Guerra Mundial da aliança estratégica com os Estados Unidos, no quadro da NATO. E assim permaneceu até 2002, quando, esgotado o modelo político, os islamistas moderados do AKP, de Erdogan, ganharam as eleições, garantiram o Estado laico e fizeram da adesão à UE o grande objectivo nacional. Em dois anos, a Turquia fez mais reformas para criar um Estado de Direito do que nas quatro décadas anteriores. "A perspectiva de adesão à UE permitiu resolver problemas que foram durante décadas tabus políticos: direitos do povo curdo, papel do exército na política nacional (...)", escreve Steven Everts, do Centre for European Reform, de Londres. "Esta forma de 'mudança de regime' ao estilo europeu é barata, voluntária e, consequentemente, duradoura." Acrescenta: "É lamentável que tão poucos europeus estejam dispostos a descrever e propor as relações UE-Turquia como a história de um sucesso geo-estratégico para a União e como a justificação do seu estilo internacional, que contrasta flagrantemente com o dos EUA."O processo de europeização está ainda a mudar a política externa turca, cuja independência em relação aos EUA se acentuou com a guerra do Iraque, aproximando-se das posições europeias: Ancara já não é o cavalo de Tróia americano na Europa. Para Everts, a Turquia não é um modelo de democratização do mundo árabe: não é árabe e tem uma longa história de ocidentalização. Mas a sua adesão teria elevado impacto e mudaria a percepção da Europa no Médio Oriente, dando-lhe muito mais meios e influência numa região estrategicamente determinante. Um rejeição teria efeitos dramáticos para a Turquia e desagradáveis para a Europa. Os sectores islâmicos seriam tentados pelo islamismo e por alianças no mundo muçulmano. Os nacionalistas laicos tenderiam a aceitar o regresso da tutela militar e a subordinação à aliança americana. Nada ficaria na mesma: a Europa perderia a Turquia.Além de dar à Europa novo peso militar e projecção estratégica, a adesão turca pode vir a ser muito menos cara do que se diz: analistas americanos consideram que o país tem hoje condições para um "boom" económico. 4. A reforma é conduzida na Turquia por uma inédita aliança entre duas correntes tradicionalmente hostis: as elites laicas, dominantes nas classes altas, e os islamistas reformadores. O AKP representa as classes baixas das cidades, que tiveram recentemente acesso à educação e que apostam na mobilidade social que hoje marca a Turquia, diz o sociólogo Nilüfer Göle. É o paradoxo turco: "O AKP deu provas suplementares de que as camadas mais islâmicas da sociedade vão no sentido dos valores europeus e apropriam-se do projecto europeu." Este é o nó do actual consenso social. Os eurocépticos - islamistas, ultra-kemalistas, generais da velha guarda ou radicais de extrema-esquerda - são minoritários: 75 por cento dos turcos apoiam a adesão.A Turquia que irá entrar na UE já não será a de hoje, adverte um jornalista. A Turquia mal começou a mudar, precisa de tempo, vai atravessar crises, mas a abertura das negociações tenderá a acelerar o movimento de reforma, uma "revolução" que a Europa involuntariamente desencadeou. Nota: O Ponto de Vista volta a 9 de Janeiro