As vidas imaginárias de quatro artistas na Gulbenkian
Jorge Molder, o director do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, não acredita que tenham, forçosamente, que existir relações entre as coisas. Daí que não estabeleça qualquer articulação entre a última grande mostra que comissariou para a fundação e a que amanhã inaugura no mesmo espaço.No princípio do ano, "Mass and Empathy" configurava-se como uma descida ao inferno a partir de uma visão celestial: atravessava o percurso do escultor britânico Anthony Gormley desde os anos 80 a partir de nove peças.Intitulada "Vidas Imaginárias", a nova exposição da sala do Piso 0 do edíficio sede da fundação tem pressupostos muito distintos. Antes de mais, porque em vez de se centrar sobre a obra de um só artista, reúne cinco nomes sob um tema pedido emprestado ao escritor francês Marcel Schwob (1867-1905).No prefácio das suas "Vidas Imaginárias" (1896) Schwob estabelece o que acreditava ser "a arte" de um biógrafo e delineava métodos de actuação. Para o escritor, o biógrafo "não tem que se preocupar em ser verdadeiro": "Tem que criar no meio de um caos de traços humanos." "Leibniz diz que para fazer o Mundo, Deus escolheu o melhor entre os possíveis O biógrafo, como divindade inferior, sabe escolher entre os possíveis humanos aquilo que é único", escreve Schwob.Jorge Molder aproxima esta perspectiva a questões com que a arte sempre se confrontou. Traça também uma diagonal até aos processos dos artistas que acabou por reunir e que, na sua obra, invariavelmente optam pela criação de personagens.Na peça que criou para a mostra da Gulkenkian ("Sur le Tage") Patrick Corillon (n. Knokke, Bélgica, 1959) conta-nos a história de Carlos Icator, um engenheiro "do século passado" que se dedica à observação de monumentos e que descobre que as marcas que os mastros dos barcos deixam numa ponte sobre o Tejo desenham a forma de um outro barco, que tanto poderá velejar o rio como o mar.Daqui, e através de uma instalação com 100 fotografias criadas por computador, Corillon parte para uma reflexão sobre qual é a medida do mundo e a hipótese (que boicota) de uma relação de reciprocidade entre o micro e o macro ou entre o fundo marítimo, a abóboda celeste e a abóboda da ponte de Icator - Corillon inspirou-se nos poemas "Un Coup de Dé Jamais n'Abolirá l'Hazard", de Mallarmé, e "The Rhyme of the Ancient Mariner", de Colleridge.A origem das vidas imaginadas pelo polémico Jan Fabre (n. Anvers, Bélgica, 1958) é diversa: mais que ficção, as suas personagens perfiguram-se como alter-egos do artista, que encara o gesto autoral como uma luta e quem o traça como um guerreiro.No vídeo "Lancelot", Fabre encarna o maior dos cavaleiros do Rei Artur (o que partiu em busca do Santo Graal) no que parece ser um combate sem adversário e que acaba por se revelar um duelo consigo próprio. A relação entre este trabalho e os 14 desenhos que o artista também apresenta pela primeira vez é directa; afirma-se em detalhes: a concha de vieira que adorna a armadura de Lancelot é o mesmo símbolo de viagem da vida para a morte e da condição humana como espaço a ser preenchido de sabedoria que surge em desenhos. O sangue que nunca corre no vídeo é o material que Fabre usa para escrever frases como "ninguém comprará nem pagará o meu corpo. Eu sou sangue". Susanne Themlitz (n. Lisboa, 1968) chega à criação de um personagem por via da sua ausência, ou seja, através da construção de uma topografia do seu quotidiano, com vestígios das suas actividades. Numa grande instalação intitulada "Oh la la...oh la balançoire" (ideia que vem de "O Barão Trepador", de Calvino) adivinhamos a vida solitária de um dos seus seres mutantes, entretido entre o cultivo desleixado de várias espécies vegetais e a decoração (algo grotesca, mas também lúdica) de um terreno que distorce o conceito de Jardim do Éden.Emília (n. 1945) e Ilya Kabakov (n. 1933 - por vezes colaborador de Fabre) remetem para uma URSS estalinista: mostram um "Quarto de Um Artista Sem Talento" com uma série de telas de grandes formatos, os únicos trabalhos de "Vidas Imaginárias" que não foram feitos para a mostra.