Elfriede Jelinek não quer ser "uma flor na lapela da Áustria"
Muitos esperavam que a Academia Sueca premiasse uma mulher, mas a "ousadia" do Comité Nobel ao distinguir, ontem, a escritora e dramaturga austríaca Elfriede Jelinek surpreendeu o mundo das letras.Nas suas primeiras declarações, a uma rádio sueca, após o anúncio do Nobel, Jelinek afirmou recear que a distinção se transforme "num enorme fardo pessoal". Sofrendo de "fobia social", nas suas próprias palavras, a escritora expressou já a sua intenção de não se deslocar a Estocolmo, no dia 10 de Dezembro, para receber o Nobel. Feminista e acutilante, disse ter consciência de "que quando uma mulher ganha um prémio, recebe-o também pelo facto de ser mulher e não se pode alegrar ilimitadamente. Se Peter Handke, que o merecia mais do que eu, o tivesse recebido, então seria como Peter Handke".Igual a si mesma, Jelinek frisou que se recusa a metamorfosear-se numa "flor na lapela da Áustria". "Elfriede Jelinek tem razão quando afirma que não quer que o Nobel tenha um significado para a Áustria", escreve o diário de referência austríaco "Der Standard" na sua edição de hoje, referindo que a autora se distancia totalmente do actual Governo, que a elite económica e política do país há décadas que evita Jelinek. "Porque razão deveria uma mulher que muitos gostariam de ver banida receber um prémio pela Áustria?", interroga o jornal, que diz que se trata, no entanto, do "reconhecimento da literatura resistente dos últimos cinquenta anos".O mais temido crítico literário de língua alemã, Marcel Reich-Ranicki, elogoiu ontem em Frankfurt uma mulher "muito nervosa e altamente sensível, invulgar, radical e extremista escritora e, em consequência disso, altamente controversa". "A minha simpatia pela sua coragem, radicalismo, determinação e fúria é enorme. A minha admiração pela sua obra mantém-se dentro dos limites", declarou Reich-Ranicki.Na Feira de Frankfurt, no stand da Berlin Verlag que, desde 2001, publica as obras de Jelinek, o editor Conradi Arnulf confessou ao PÚBLICO ter ficado surpreendido com a decisão, "porque o Comité Nobel premeia tendencialmente vozes universalistas". "É um importante sinal reconhecer-se uma crítica social implacável", disse.Um laboratório da língua alemãAos 57 anos, Elfriede Jelinek é uma das vozes mais importantes no espaço cultural de língua alemã. A sua celebridade deve tanto ao talento com que faz da escrita um laboratório da língua alemã - um pesadelo para os tradutores - como para alimentar polémicas, em especial contra a coligação governamental de Viena, onde ao lado dos democratas-cristãos se senta a direita populista de Joerg Haider. "Estou desesperada porque toda a minha vida tentei impedir o que agora sucedeu, e vejo que não é possível nenhuma oposição. Tudo o que nós, artistas, fizemos, fortaleceu Haider", disse, em 2000, quando o FPOe chegou ao poder, levando a União Europeia, num acto inédito, a levantar sanções contra a Áustria.Jelinek inscreve-se na tradição literária austríaca ao lado de grandes polemistas como Karl Kraus e Thomas Bernhard. Tal como este último, ela foi classificada como "pornográfica" e "traidora da pátria". É ostracizada no seu próprio país, onde vive reclusa e atacada pela direita populista - que no início da década de 90 se lançou numa campanha de difamação contra a escritora, "Você gosta de Jelinek, ou ama a arte e a cultura?" -, apesar de internacionalmente reconhecida e agraciada com inúmeros prémios literários, tornou-se espelho cruel, cáustico e acutilante da mesquinhez e das torpezas da República alpina. O país que Jelinek retrata é um país curioso, oscila entre a sentimentalidade e o cinismo. Primitivo e pretensioso, nostálgico do Império. Jelinek fustigou particularmente a Áustria, "um país construído sobre cadáveres tal como a Franca está construída sobre Napoleão" no seu romance "Die Kinder der Toten" ("As Crianças dos Mortos"). Temas recorrentes nas suas obras são a violência e o poder na sociedade de consumo, a opressão feminina e a sexualidade. Nas suas experiências com a linguagem, transformou o alemão numa arma estética contra as sociedades modernas, contra o conformismo bem-pensante do seu país e numa denúncia eloquente e crua da exploração do ser humano. Jelinek é uma espécie de anjo vingador barroco.