Há cada vez mais solteiros em Portugal

Os números não enganam: há em Portugal cada vez mais solteiros. Os dados dos dois últimos recenseamentos da população mostram que, de 1991 para 2001, subiu de 1.213.734 para 1.555.124 o número de portugueses com mais de 20 anos que decidiram não casar. No espaço de dez anos, mais 314.390 cidadãos juntaram-se ao grupo dos solteiros. A tendência não é exclusivamente portuguesa: em todos os países da União Europeia são também cada vez mais os que fazem vida a solo. Na Holanda, por exemplo, os lares unipessoais são hoje mais de um terço do total.Olhando apenas para os solteiros portugueses com mais de 30 anos, verifica-se que, entre os dois censos, o crescimento foi assinalável: de 98.151 passou-se para 155.883. Na faixa etária dos 40 aos 44 anos, passou-se de 40.775 solteiros em 1991 para 64.597 em 2001. O panorama é semelhante no resto da Europa. Entre 1991 e 2001, a Alemanha ganhou 1.034.968 de solteiros e a Suécia 102.186.No que toca à evolução no número de casamentos registados em Portugal, continua a não haver margem para dúvidas: têm vindo a decrescer. Esta semana, o Instituto Nacional de Estatística revelou que em 2003 celebraram-se 53.735, menos 2722 do que no ano anterior.Para analisar o fenómeno do aumento no número dos que preferem não casar, é fundamental, ainda, espreitar os números relativos às uniões de facto, que no espaço de dez anos cresceram consideravelmente: o recenseamento de 1991 contou 194.315 portugueses naquela situação - que para todos os efeitos são solteiros -, enquanto o de 2001 apurou 381.120. Alice Delerue Matos, professora do Departamento de Sociologia da Universidade do Minho, explica que há agora uma tendência para a "desinstitucionalização" do casamento. "A redução da nupcialidade e o aumento dos divórcios e uniões de facto, por um lado, e a alteração das representações sobre a conjugalidade e a família são fenómenos comuns aos diferentes países europeus. Estas transformações apenas ocorreram mais tarde e assumem menores proporções em Portugal", constata. Solteiros hoje são mais toleradosMas o que é que leva, afinal, um número cada vez maior de homens e mulheres a optar por não casar? "Uma multiplicidade de factores", responde Isabel Dias, socióloga da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Para perceber esta tendência, diz, é necessário, antes de mais, olhar para as faixas etárias dos solteiros. "Os jovens retardam cada vez mais a constituição de família, essencialmente devido ao prolongamento de estudos e porque, consequentemente, não estão ainda inseridos no mercado de trabalho", explica a professora da FLUP, que trabalha sobretudo na área da Sociologia da Família.A partir dos 30 anos, muitos jovens "ainda prosseguem os estudos", nomeadamente ao nível de pós-graduações. Os outros, os que já estão inseridos no mercado de trabalho, enfrentam outro problema: a precariedade das relações laborais. "Se a trajectória é marcada pela rotatividade de emprego os projectos de vida a dois acabam por ficar em 'stand-by'", interpreta Isabel Dias. Já depois de transposta a barreira dos 35 anos começa "um outro patamar da vida adulta". "Os solteiros são-no ou por opção ou porque perderam algumas oportunidades de encetar uma conjugalidade, seja pela trajectória da vida seja porque a aposta numa carreira colidiu com a opção conjugal. Chega-se a uma altura em que já não há retorno. No caso das mulheres, há até as limitações biológicas ao nível da reprodução", continua a socióloga. Isabel Dias sublinha ainda que os que escolhem "fazer vida a solo" são sobretudo "aqueles com habilitações literárias mais elevadas". A tendência no crescimento do número dos que preferem não casar não é alheia ao facto de os solteiros serem hoje mais tolerados. "Ao longo da história, ser solteiro era uma condição quase antinatural. Só os deficientes e as pessoas com poucos recursos é que podiam ser solteiros. Com a modernidade, este fenómeno está mais associado aos movimentos de individualização da sociedade - o indivíduo procura em si mesmo alguma realização, concebe-se como autónomo e auto-suficiente", nota a professora da FLUP. Porque "ser solteiro não significa não ter conjugalidade", Isabel Dias adianta que este pode ser um factor que também concorre para explicar que haja cada vez mais quem opte por não dar o nó. "Já vai longe o tempo em que o casamento era visto como uma forma de ter alguém ao lado e de poder ter uma vida sexual activa. Hoje, para as pessoas terem uma relação que pode até ser duradoura não precisam de ser casadas", afirma a socióloga.Donos do próprio destinoIndependentemente "de serem mais tolerados socialmente", os solteiros não conseguem ainda evitar certas atitudes preconceituosas. "Quem envereda pela via do celibato não se livra de algumas questões mais incómodas, principalmente as mulheres. Para elas, muitas vezes é apontado o dedo acusatório da família e dos amigos", ilustra Isabel Dias. Seja como for, sublinha, o facto de permanecerem solteiros é vivido "com mais ou menos dramatismo pelos implicados". É "muito mais penalizante" para as mulheres fazerem vida a solo, devido às "representações sociais que se fazem delas, muito associadas à sua condição de reprodutoras". "É precisamente por isso que elas se esforçam mais para casar", esclarece a professora da FLUP. Os números confirmam: há muito mais homens solteiros. Se se olhar para os dados do Censos 2001, é fácil perceber que a vida a solo é mais frequente entre eles. Na faixa etária dos 35 aos 39 anos, há 55.773 homens solteiros, contra 41.022 mulheres. "Muitas solteiras, mesmo as que já estão mais ou menos convencidas de que não vão casar, continuam a sonhar com o príncipe encantado", diz a socióloga. Há ainda outra diferença de género na interpretação do próprio estado civil, constata Isabel Dias. "Para os homens, ser solteiro é uma condição muito privada. Eles não gostam de falar nisso e quase nunca explicam por que é optaram pela vida a solo. Para as mulheres, o celibato é, em si, um motivo de conversa." A professora da FLUP nota também que "ser solteiro é muito mais anónimo nas cidades do que nos meios pequenos e, logo, muito menos penalizante."Já no que diz respeito à forma de encarar a vida, a socióloga entende que "os solteiros pensam muito mais na gestão do quotidiano". "De uma forma geral, não pensam muito a longo prazo. O futuro pode ser qualquer coisa, na medida em que eles são donos do próprio destino."

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