O drama familiar por trás da morte da pequena Joana

A família Domingos Cipriano tem uma genealogia complexa e sombria. Mas Anabela, irmã dos dois suspeitos da morte de Joana, resume-a de forma automática e fria. "Somos nove irmãos. A minha mãe e três irmãs foram para França vindimar. O Nelson vive aqui no Figueiral e não sei o que anda a fazer. O Arménio está preso em Silves, roubava para comer. O Nuno está preso em Pinheiro da Cruz, o jornal diz que apontou uma faca a um senhor de 50 anos, em Portimão, e que o assaltou. A Leonor [mãe de Joana] e o João [tio da menina] parece que também estão presos, por causa daquilo que o mundo já sabe. E eu, pronto, sofro de leucemia desde pequenina", conclui, perante o olhar esbugalhado de três dos seus cinco filhos, todos descalços e seminus, espojados nos sofás da sala exígua e imunda. "Sempre fomos, assim, pobres", atira depois, olhando em direcção ao corredor, onde a residência térrea se prolonga. A casa, situada em Enxerim, um bairro pacato de Silves, é, ela própria, uma imagem poderosa da miséria anunciada. No quarto das crianças, três colchões manchados, colados uns aos outros, cobrem todo o chão; há roupa por toda a parte e um cheiro nauseabundo a dejectos de cão; em cima da estante tosca, ao fundo, onde seria normal encontrarem-se carrinhos ou peluches, repousa apenas uma faca, uma faca verdadeira e bicuda. Na casa de banho, por sua vez, a cor branca original da louça está coberta por uma capa escura de fungos, calcário e detritos. Na cozinha, o desmazelo e o cheiro são semelhantes: em cima da mesa, duas broas esventradas dão substância às moscas; e o frigorífico, com odor forte, guarda apenas meia dúzia de peixinhos de rio, minúsculos e amarelados, e uma garrafa de polpa de tomate.Nada disto, no entanto, parece preocupar Anabela, que se sustenta com o "rendimento mínimo e os abonos das crianças". "Não ligue, já se sabe que casa onde haja miúdos é assim". A única razão que a angustia, de momento, é mesmo aquela televisão, ininterruptamente ligada, mostrando constantemente a cara dos seus dois irmãos, João e Leonor. "De cada vez que dá o jornal e os vejo, o meu coração começa a saltar. Eu acho que eles estão errados, acho que a minha irmã não tem culpa", diz, concretizando depois a sua versão dos acontecimentos. "Ele sim. O João era capaz disso. É danado para beber, pode-se ter dado quando estava bêbedo", afirma, acrescentando: "Esteve aqui escondido quatro dias, esta semana, mas foi-se embora de repente, depois de pedir-me cinco euros para voltar para Cacela. Desconfiei. Para mim, queria fugir. Só que a polícia foi lá encontrá-lo, no Fiat branco onde costuma dormir." "O nosso pai, quando bebia, batia-nos forte, mas era só isso" A facilidade com que a mulher, de 34 envelhecidos anos, sentencia o irmão gémeo mostra bem a história tortuosa e sombria dos Domingos Cipriano, um caldo de pobreza material e espiritual que fez os miúdos crescer a pão e água, na aldeia de Soudes, do outro lado do Barlavento, em Alcoutim. A mãe, 54 anos, vendeu-a à avó - a quem "deve tudo" - tinha apenas três meses. O pai, agricultor, caçador, era rígido e ausente, prenunciando já o alcoolismo do filho João. "Quando bebia batia-nos forte, mas era só isso. De resto era um bom pai", ressalva Anabela, aduzindo que o idoso continua a morar no mesmo sítio e não deve estar ainda a par do que tem sucedido.Os filhos do homem de 77 anos há muito que lhe desapareceram do convívio, espalhando-se um pouco por todo o Algarve, em busca de sustento. A falta de instrução de todos eles, uma espécie de vício da inércia, levou-os, no entanto, a quase todos, por percursos ociosos e criminosos.Num café de Silves, a fama surge como uma maldição genética. "São todos assim. E não me venham dizer que é só falta de dinheiro. A gente vê como andam os miúdos, nem banho lhes dão. Isso não é falta de dinheiro. E depois não são de trabalhar. A Anabela veio para aí para uma casa de má fama. Aos irmãos, estão fartos de lhes oferecer emprego para as obras: ninguém quer", conta alguém. A poucos quilómetros dali, em Enxerim, na povoação de Companheira, a tia dos nove irmãos - "como uma mãe para muitos deles" - confirma o estigma: quase todos se perderam. De alguns perdeu o rasto; mas o tio de Joana - que toda a vida "amparou" - era uma visita frequente. "Não tenho nada contra ele", começa por dizer. Pouco depois, quando se esmiuça a biografia, o seu discurso muda radicalmente. "Lembro-me de quando ele tinha 13, 14 anos, e o cunhado lhe ter pedido para matar um vizinho em troca de uma bicicleta e vinte contos. O rapaz pegou na caçadeira e foi lá: deu um tiro que acertou no ombro do homem", recorda Almerinda. "E bebe muito, sim. É bêbedo. E não é de trabalhar: ainda agora a mãe convidou-o para ir vindimar para França e ele não quis. Come porque lhe dou alimento ou então porque consegue uns dinheiros a vender bolas de berlim, na praia de Cacela". Ao fim de algumas perguntas, Almerinda parece desgastada. Os seus olhos ficam aguados: está cansada dos agentes da PJ à porta, dos jornalistas que a denunciaram na terra. "Ontem fui às festas de Poço do Barreto e as pessoas olhavam para mim. Metem tudo no mesmo rolo", lamenta. Por isso não quer fotografias. Por isso não segue as romarias populares à Figueira, que ultimamente se tornaram frequentes.Pelas 13h00, a ponte da ribeira do Farelo, onde Figueira surge alva numa pequena encosta, tem um trânsito inesperado. Há vários carros estacionados nas imediações e dezenas de populares debruçados sobre a água.Mais à frente, meia dúzia de pessoas agitam-se no meio da vegetação rasteira e seca, a caminho do casario - e logo as atenções se viram para lá. O motivo do sobressalto tem que ver com a presença do tio de Joana, ali levado por mais três elementos da Polícia Judiciária. A abordagem ao grupo faz-se discretamente: os agentes já haviam dado sinal que não queriam que ninguém se aproximassem. Por trás das moitas, no entanto, é possível ver-se que o tio da menina dá indicações gestuais, apontando em várias direcções. Os polícias parecem seguir essas pistas: sobem por entre as pedras, param, falam pelo telemóvel, encaminham-se para uma horta, param novamente. A dada altura, todavia, surgem reforços furiosos sem temor pela autoridade, entre a população justiceira. Os agentes sentem que a situação se pode descontrolar e já não respondem aos insultos. O olhar de João nunca se cruza com os seus inimigos, apesar das palavras lhe serem dirigidas. "Ficavas aqui todo esticadinho. Se fosse no tempo do Salazar morrias já aqui. O que era preciso era uma perninha da PIDE", vociferavam uns quantos, a meia dúzia de metros. "Andas a gozar com esses tipos. E eles deixam. Eles deixam-se enganar. Se em vez de andarem a passear-te te dessem o que mereces, é que era. Falta aqui a PIDE, falta aqui a PIDE", entoaram outros tantos, numa deriva totalitária que ganhava cada vez mais adeptos.

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