Couto dos Santos "é uma escolha de fachada" para a Casa da Música
Pedro Burmester foi um dos principais mentores do projecto da Casa da Música. Esteve a ele ligado desde o seu lançamento, em 1999, tendo assegurado diferentes funções ao longo de cinco anos: programador, administrador, consultor. Em Março de 2004, demitiu-se do cargo de assessor para a programação junto de Manuel Alves Monteiro, regressando em exclusivo à sua carreira de pianista. Mas a Casa da Música permanece no centro das suas preocupações.PEDRO BURMESTER - O que este processo evidencia, desde há dois anos, é um desnorte e desconhecimento, principalmente por parte do Estado, que é o detentor da maioria do capital, do que é e do que fazer com o projecto Casa da Música. Esse desconhecimento passa pelo facto de nunca ter havido, desde que o ministro Pedro Roseta tomou posse, uma conversa entre o ministro da Cultura e a Casa da Música para perguntar o que é o projecto em termos culturais. Há também um desinteresse em relação a ele. A Casa da Música tende a tornar-se apenas numa casa de acolhimento de espectáculos, e o facto de ser um projecto que se desenrola no Porto também contribui para haver esse distanciamento maior - o Estado entende que é uma questão essencialmente local.P - Há, então, razões políticas para esse desinteresse?R - Há as razões naturais de um país extremamente centralizado, em que tudo o que se passa fora de Lisboa passa sempre para segundo plano. O desnorte em relação ao projecto é tal que se nomeiam três presidentes em dois anos - e saiu um primeiro presidente claramente desajustado em relação ao cargo que ocupava, como se verificou pelas medidas que quis adoptar e pela maneira ignorante como tentou gerir o projecto.P - Refere-se a quem?R - A Rui Amaral, que foi claramente uma escolha errada - como o engº. Hélder Sampaio. Depois, o dr. Alves Monteiro foi também uma escolha errada. Acabou por sair antes de acabar a missão de que estava incumbido, que era terminar a obra, instituir um modelo de gestão, encontrar financiamento, definir o projecto artístico. Tudo isso ficou a meio. Agora esta terceira escolha é apenas de fachada. O engº Couto dos Santos, que ocupa cargos em variadíssimas empresas, bastantes delas do Estado, é um daqueles homens que estão dispostos a dar o seu nome sempre que é preciso ter alguém de confiança. E o facto de ser um presidente não executivo, numa fase crucial do projecto, é um contra-senso incompreensível.P - Isso foi justificado por razões formais, para evitar a questão da incompatibilidade de cargos.R - Então é um processo enganador. Ele não tem disponibilidade total para o projecto, e o que vai acontecer, na prática, é que quem vai gerir a Casa da Música será o dr. Agostinho Branquinho, que se mantém no cargo. Isto revela, mais uma vez, e como já aconteceu com o dr. Rui Amaral e o dr. Alves Monteiro - e também agora, pelo que veio a público, com o engº Couto dos Santos -, que são escolhas do dr. Rui Rio e não do Estado. A Câmara do Porto, que, em termos de política cultural, manifesta um total desinteresse, tem aqui uma posição que é um contra-senso: diz que não põe um único tostão na Casa da Música e, no entanto, faz finca-pé em controlá-la. Só posso especular sobre as explicações para isso: uma teoria é que, com o argumento de que o Porto 2001 não terminou as obras que deveria, a câmara terá interesse em manter controlo sobre a Casa da Música, para, eventualmente através de fundos dela, terminar ou até fazer outras obras que gostaria de fazer; outra teoria é a de que a Casa da Música poderá ser utilizada como trunfo nas eleições autárquicas, o que me pareceria escandaloso depois do que aconteceu e do que tem sido feito no Porto em relação à cultura.P - Tem alguma expectativa de que a nova ministra altere a relação que o Estado tem mantido com a Casa da Música?R - Absolutamente nenhuma. A nomeação agora feita é reveladora do silêncio de mais um ministro da Cultura em relação ao projecto. Estamos a falar de um projecto que teve já cinco ministros e três presidentes de câmara diferentes.P - E cinco administrações...R - E, à boa maneira portuguesa, de cada vez que mudam as pessoas que estão no poder, os projectos sofrem instabilidades que não lhes permitem ter um caminho certo. Eu diria, apesar de tudo, que, mais tarde ou mais cedo, a Casa da Música vai cumprir a sua função, vai ser um projecto estruturante e fundamental para o país, e tem a sorte de estar no Porto. Não vai ser nos próximos tempos, mas isso virá a acontecer. Estas pessoas hão-de passar, e hão-de vir outras mais inteligentes - espero eu - que permitam que o projecto se venha a desenvolver.P - No centro da discussão sobre o futuro da Casa da Música está a questão do modelo de gestão. Que modelo defende?R - Essa questão está sobre a mesa desde o início. Creio que, em 1999 ou 2000, por iniciativa da Porto 2001, fizemos consultas sobre quais os modelos a implantar; e as respostas são ou sociedade anónima, ou instituto público ou fundação. Não é muito difícil analisar qual das três é melhor para a Casa da Música. O que é difícil é decidir. O que era válido há um ano atrás, é válido hoje. Mas continua a não haver modelo de gestão, a não haver garantias de financiamento do projecto e a não se saber que relação é que a Orquestra do Porto terá com a Casa da Música. E continuamos a ter pessoas à frente da Casa da Música que desconhecem totalmente a área cultural.P - A fundação é o modelo que defende?R - Parece-me o melhor. Mas isso é secundário; o que é preciso é haver vontade política para dizer que este é um projecto estruturante, no qual é preciso apostar, e encontrar as pessoas certas para o liderar. P - Mas acha que há condições para se angariarem fundadores?R - A ideia era associar fundadores públicos e privados, à semelhança do que acontece com Serralves. Mas duvido muito que haja quem queira meter dinheiro neste projecto com o histórico que ele tem e vai continuar a ter.P - Que figurino defende para a articulação com a Orquestra do Porto?R - Defendo o mesmo desde o início: a integração da Orquestra no projecto Casa da Música, uma vez que se trata de um projecto para funcionar em rede e articulando as diversas estruturas residentes. O receio de que a Orquestra, ao entrar, se perde não faz sentido. É o contrário: cada uma das estruturas, sendo diferente, dá força ao todo. E também há vantagens quanto à afectação de recursos. Mas continua a não haver decisão, porque há desconhecimento e falta de coragem."Uma das missões do dr. Alves Monteiro era afastar-me da Casa da Música"Olhando agora para trás, Burmester admite ter sido "ingénuo" ao aceitar o convite para ser consultor para a programação da Casa da Música.P - A esta distância, arrependeu-se de ter aceitado ser consultor do dr. Alves Monteiro? R - Sim. Se voltasse atrás, não teria aceitado. Aceitei-o por ingenuidade. Nos meses que se seguiram, foi, para mim, evidente que uma das missões do dr. Alves Monteiro era afastar-me da Casa da Música.P - Quando é que isso se lhe tornou óbvio?R - Quando eu repetidamente lhe dizia que a Casa da Música precisava de um director artístico e de tomar decisões ao nível artístico, ele fingia que não percebia e as coisas continuavam na mesma. Eu dizia-lhe que, como consultor, não me competia fazer a programação, mas desenhar uma estratégia. Isso foi feito, e o próprio dr. Alves Monteiro apresentou-a aos accionistas. A questão foi sendo sempre adiada. E, quando o confrontei com a minha preocupação de a Casa da Música ir abrir em breve e continuar a não haver direcção artística, a resposta chegou-me por uma carta de tom mais ou menos ameaçador, e com a nomeação de um director artístico poucos dias depois, de que apenas tive conhecimento pela imprensa. Com estes factos, tornava-se clara a estratégia seguida.P - Que razões explicam o atraso na sua decisão de se demitir do cargo e o silêncio a que depois se remeteu?R - Achei que o projecto precisava de alguma paz para avançar. E havia uma coisa positiva: a nomeação de um director artístico, com plenos poderes para fazer uma programação. Essa questão foi resolvida. Achei que falar nessa altura poderia perturbar, uma vez mais, o projecto. Mas agora, passados seis meses de a Casa da Música ter um director artístico, continua a não haver um projecto artístico. A programação que está prevista para o ano é quase exclusivamente de música clássica. Toda a lógica de a Casa da Música ser um projecto globalizante com outras áreas musicais não está prevista. Vejo um director artístico que tinha, quando entrou, "a faca e o queijo na mão" para impor condições, nomeadamente a questão da Orquestra do Porto, e não o fez. Estou, por isso, muito preocupado com a situação.P - Teve algum encontro de trabalho com Anthony Withworth-Jones?R - Tive dois ou três contactos ocasionais. Ele propôs-me ter uma conversa comigo, mas não aceitei, porque senti que não devia nada à Casa da Música.P - O Serviço Educativo viu, entretanto, ser substituído o seu coordenador. Como é que vê Suzana Ralha a suceder a Fausto Neves, depois da demissão deste?R - Foi uma surpresa. Tinha a Suzana Ralha em melhor conta, enquanto pessoa. Ela cometeu uma grande deslealdade em relação ao Fausto, ao ter regressado. O Fausto fez um trabalho notável no Serviço Educativo. Não sei o que a Suzana vai fazer; espero que não faça da Casa da Música uma sucursal dos seus Gambozinos [uma escola de educação musical] - corre-se esse risco.P - O seu afastamento, há quase um ano, das responsabilidades no projecto permitiu-lhe apostar mais no seu trabalho como músico e pianista. A Casa da Música permanece como preocupação, ou mágoa, no seu quotidiano?R - Mentiria se dissesse que não me preocupo e que não sinto um vazio - isso é natural. É um projecto a que me entreguei muito, durante quatro ou cinco anos de sacrifício da minha própria carreira, mas com gosto e vontade. Continuo a senti-lo muito próximo.P - Admitiria regressar? E em que circunstâncias?R - Admitiria. Quando sentisse que havia vontade política de, de facto, fazer da Casa da Música um projecto culturalmente estruturante. Mas nunca com os actuais responsáveis, principalmente os do poder autárquico. Esta autarquia é extremamente prejudicial para a cidade. Em termos culturais, é mesmo preocupante o que se passa no Porto, tanto na ignorância total que há sobre o que é uma política cultural - para o dr. Rui Rio, cultura é organizar um concerto do Rui Veloso, o PortoSound, uma exposição de dinossauros e pouco mais -, como na maneira como é exercido o poder. Dou dois pequenos exemplos: quando foi a crise de 2003 na Casa da Música, a dra. Isabel Alves Costa foi ameaçada pelo dr. Paulo Morais de que o seu cargo podia estar em risco; e o Pedro Abrunhosa foi recentemente convidado pelo director artístico para tocar na inauguração da Casa da Música, que depois teve de o desconvidar, porque a administração teve pressões da câmara para que o Pedro não actuasse... Dois exemplos que mostram bem como é exercido o poder no Porto.P - E como viu a recusa de Maria João Pires de actuar na inauguração, em solidariedade para consigo?R - Foi um gesto amigo. Fiquei sensibilizado.P - Admitiria, como pianista, actuar na inauguração da Casa da Música?R - Não. Nem tenho de me preocupar com isso, porque tenho a certeza de que não vou ser convidado.P - Que razões acha que levaram Alves Monteiro a ir-se embora?R - Não sei. Mas revela o fim de uma etapa. Com todas as críticas que lhe possa fazer, havia da parte do dr. Alves Monteiro um genuíno interesse pelo projecto, e interesse em que se tomassem decisões. E, apesar de tudo, na área artística, embora demonstrando não a conhecer e tendo tomado atitudes erradas, não interferiu. Parece-me que isso vai acabar. Mais mês menos mês, vamos ter o director artístico ou a demitir-se ou a resignar-se. A anunciada investigação do Ministério Público às administrações da Porto 2001/Casa da Música, na sequência da auditoria do Tribunal de Contas, não preocupa Burmester, que diz que o projecto está a ser vítima de "perseguição".P - Como reage à notícia de que as sucessivas administrações podem vir a ser investigadas por gestão danosa?R - Não me preocupa. Estou de consciência perfeitamente tranquila em relação ao tempo que passei na administração e a tudo o que fiz. Mas este é, provavelmente, um dos projectos mais auditados e virados do avesso em Portugal. Há uma clara perseguição ao Porto 2001. Mais uma vez, aponto o dr. Rui Rio. É um obsessivo: quando persegue, persegue até ao fim. Ele, que fala com muito apreço do Colégio Alemão, se aí tivesse aprendido melhor a parte da formação cultural e humana... Mas interessou-se mais por outras facetas menos elogiosas para a cultura germânica. Se calhar, gostaria de uma cidade onde houvesse muitos polícias com rottweilers, sem arrumadores e toxicodependentes, e em que os agentes culturais nem sequer entrassem, porque só causam problemas. Aliás, o dr. Agostinho Branquinho escreveu há pouco tempo que as práticas dos agentes culturais em Portugal se pareciam com as praticadas pelo Hitler, Estaline e outros, o que revela muito bem o que é que estas pessoas pensam sobre a cultura.P - Algumas das notas da auditoria do Tribunal de Contas apontam ingenuidade e irrealismo quanto aos projectos, datas e custos assumidos pelos responsáveis da Porto 2001/Casa da Música.R - Estou de acordo. Em Portugal, infelizmente, contamos pelos dedos os casos em que isso não acontece. Falando especificamente em relação à Casa da Música, parecia-me evidente que um edifício daqueles demoraria mais anos a fazer, e que iria custar mais. Mas também tenho a certeza absoluta de que, quando estiver pronto, o tempo que demorou é o tempo certo, e aquilo que custou é muito bom preço para a qualidade do edifício.