A história do burro que chora

Sobretudo, em "Underground", Kusturica convocava os agentes do caos para figurar a guerra; em "Gato Preto, Gato Branco" desenvolvia um projecto, próximo de "Tempo dos Ciganos", na medida em que expunha todo o seu bestiário essencial, desde os "eróticos" gatos do título, ao porco que devorava um ferrugento automóvel: unia o aleatório dos surrealismos a excessos outros, de comida, de poder catártico da música, de abundância de formas físicas, em terrenos contíguos a cineastas como Fellini, mas com uma paleta bem eslava de sons e de imagens.

Esta breve viagem aos antecedentes do mundo conceptual de Kusturica justifica-se a vários títulos, quando falamos de "A Vida É Um Milagre": o microcosmos reconstruído para esta ficção é o dos territórios de maioria sérvia, no interior da sua Bósnia-Herzegovina natal; os banquetes, festas e excessos carnavalescos (pasto perfeito para análise bakhtinianas e para paralelos produtivos com outros mundos "carnavalescos", de Rabelais a Buñuel) abundam, levados à náusea na sequência em que o pequeno "gangster", no carro, se lambuza de comida e de lascívia; animais simbólicos, a recordar o seu habitual bestiário, não faltam - gatos, ovelhas, cães e, sobretudo, um burro que chora, pautando estrategicamente a ficção.

Com efeito, a primeira aparição faz-se num dos percursos iniciais dos vários veículos que se deslocam sobre carris de uma rede ferroviária de montanha, pretexto para a Festa e para a Viagem (grandes temas subsidários do filme): o burro do cangalheiro atravessa-se na linha, impedindo a circulação, e chora um amor perdido. Mais tarde, regressa em momentos fulcrais: para impedir o protagonista de se suicidar debaixo do comboio e para favorecer o reencontro dos amantes separados, uma espécie de Romeu e Julieta provinciano, metáfora do conflito da Bósnia e simbólica solução previsível para o absurdo da "guerra civil". O "homem dos comboios" sérvio, casado com uma cantora de ópera, que perdeu a voz (e o juízo), e pai de um jovem futebolista que aspira a jogar no Partizan de Belgrado, sonho interrompido pela chamada para a tropa, nas vésperas da guerra, apaixona-se por uma bósnia muçulmana, que pretende, inicialmente, usar como refém a fim de recuperar o filho preso.

Esta história de "amor louco", relativizada pela loucura circundante, tornando o "circuito de comboio" (e a sua maquete) o palco de uma guerra de traficâncias, pequenos crimes e sabujices subreptícias, constitui um segundo andamento do filme: mais comovente (veja-se a cena da troca de prisioneiros na ponte) e menos esquemático. O primeiro andamento é Kusturica a fazer Kusturica, em divertido piloto automático, mas repetindo tiques e autocitando-se. Há grandes momentos, como a festa de inauguração da nova ferrovia ou os pormenores do carro sobre carris, ou ainda o achado do já referido "burro chorão", mas não acrescenta muito ao que já conhecíamos do cineasta.

A história de amor "jugoslava", apesar de óbvia na sua valência interétnica, desloca a parábola para campos visuais de grande beleza com os corpos unidos a rolarem na neve ou o ritual de aproximação dos futuros amantes sob os bombardeios.

O Carnaval da guerra e as suas peripécias - um inacreditável exército de guerrilha, o regresso da diva sem voz, depois de ter fugido com um músico húngaro, a bola de futebol esvaziada (outro símbolo algo óbvio do absurdo da guerra) - permanecem unificados por um território à volta do caminho-de-ferro, com evidente citações de Buster Keaton e do seu "The General/Pamplinas Maquinista". A comédia keatoniana modera e modela a visão, mas acaba por funcionar como elemento de estranheza na irrisão do mundo de Kusturica, igual a si próprio e diferente de si próprio.

Sugerir correcção
Comentar