Lisboa mais tolerante mas ainda provinciana para os homossexuais

"Na cidade resguarda-me o anonimato", comenta António Serzedelo, da Opus Gay, ao reflectir sobre a abertura recente de Lisboa à comunidade LGBT (lésbicas, "gays", bissexuais e transgéneros). "A Lisboa acorrem os 'gays' do resto do país porque não suportam a ostracização". No entanto, refere: "eu sou lisboeta e gosto muito de Lisboa, mas acho que está longe de tudo. Ainda continua a ser uma cidade de muitas exclusões". Fora do convívio nocturno ou do arraial "pride", fora dos eventos de intervenção política como a marcha do orgulho "gay" ou de outras demonstrações como o Festival de Cinema Gay e Lésbico, que esta semana começou, como é que Lisboa acolhe esta minoria? Em que sítios é que os LGBT se sentem mais à vontade? Os guetos proliferam ou extinguem-se?"No sítio onde vivi viam-se pessoas do mesmo sexo de mão dada", comenta Nuno, nome fictício, que estudou numa cidade dos Estados Unidos e agora é professor universitário em Lisboa. "Aqui conheço casos recentes de pessoas que passaram por situações difíceis por manifestações de afecto", acrescenta, comparando os dois espaços urbanos. Como exemplo, refere duas histórias de homofobia que chegaram a dar origem a um protesto da comunidade LGBT em Julho. A primeira passou-se com um casal de adolescentes no Parque Eduardo VII. Supostamente, um dos jovens foi ameaçado fisicamente pela polícia por se recusar a afastar-se do namorado. A outra foi na Gulbenkian, entre um casal de universitários e os seguranças do jardim. "Por consciência destas situações as pessoas têm tendência a proteger-se. Há um risco de insulto ou de reacções que não passa pela verbalização ou ameaça física", diz Nuno.Vive com o companheiro há três anos. No ano passado, apresentaram pela primeira vez a declaração de IRS conjunta. Descreve a relação com os vizinhos como "cordial e urbana". A nível profissional, assume publicamente a sua orientação sexual, mas receia ser vítima de discriminação. "Não sei até que ponto há problemas, é possível que tenha tido. Essa é também uma das violências. É difícil perceber até que ponto existe discriminação ou não. É provável. Todos sabemos que existe."Mas como se sente um homossexual nas ruas alfacinhas? Nuno considera que não há "grande diferença em função das zonas, mas sim em função dos eventos específicos e sítios específicos".A ambiguidade entre esconder e mostrarSe, por um lado, a homossexualidade é uma questão do foro privado e uma grande cidade confere sempre um grau maior de anonimato, por outro, muitos LGBT acreditam que só através da visibilidade é que a sociedade poderá evoluir no sentido de os respeitar. Nuno explica que "é como esta entrevista, de certa maneira. A maior parte das pessoas não tem de fazer isto, mas pode fazer a diferença". Considera que a visibilidade dos "media" pode ser perigosa. Por isso, relutante, acabou por falar mas apenas na condição de o fazer sob um nome fictício.O número de visitantes do arraial "pride", de noite, e os da marcha do orgulho, de intervenção política e social, de dia, estes últimos muito inferiores, reflectem em parte essa ambiguidade entre querer esconder e mostrar.É também dessa natureza conflitual que têm nascido as associações e estabelecimentos comerciais vocacionados para a comunidade LGBT. Mas será que isso leva à "guetização" ou contribui antes para o fim de guetos?Jó Bernardo, dona da Livraria Esquina Cor-de-Rosa, ao Príncipe Real, de temática LGBT, defende que "cada vez há menos 'guetização'" em Lisboa. Mas que "forçosamente temos de começar por lá". Os estabelecimentos LGBT funcionam, "quanto mais não seja, como provocação social, no sentido de mostrar que estas realidades existem e não são tão diferentes das outras. Este é um estabelecimento de vidros, aberto para o exterior. Não é nada de especial, é um estabelecimento como outro qualquer. Mostra que aqui não há anormais, há pessoas diferentes".O espaço é pequeno mas acolhedor. Para além de ter livros, também tem umas mesinhas onde se pode tomar café e conversar.Jó é transexual e, como tal, foi-lhe complicado encontrar trabalho. Mas foi desses momentos difíceis que nasceu a ideia de criar a livraria. Explica que, há cinco anos, quando abriu as portas pela primeira vez, ainda não havia nenhuma secção LGBT nas livrarias lisboetas, ao passo que nas outras capitais europeias havia livrarias inteiras sobre esta temática. Aconselhada por um amigo, apercebeu-se dessa falha no mercado e meteu mãos à obra como forma de criar o seu próprio emprego. Um ano depois, a Fnac passou a ter uma secção LGBT e, mais tarde, a ideia estendeu-se a outras livrarias. Jó sonha com o dia em que já não seja necessária a sua livraria - mas não acredita que isso aconteça enquanto for viva.Dos bares ao guia e à imobiliária "gay"Eurico Vieira, dono de um bar e dois hotéis LGBT pioneiros em Lisboa, vê nestes estabelecimentos um lado "pedagógico" e "anti-'guetizante'". Insiste na expressão "anti-'guetizante'" porque hoje muitos bares LGBT funcionam de porta aberta. Os guetos existiam sim antes de ele abrir o bar, diz, uma vez que todos os outros bares e discotecas "gays" de Lisboa funcionavam à porta fechada: "agora as coisas já não são escondidas, já não há guetos".Mas os bares e livrarias não são os únicos estabelecimentos LGBT que se podem encontrar em Lisboa. No guia "Spartacus", um guia turístico LGBT muito apreciado entre a comunidade, também se pode encontrar referência a uma escola de línguas."A escola é convencional, não temos é problemas com isso", explica Rui Marques, um dos donos. "Poderia haver problemas se também tivéssemos cursos para crianças", mas não têm.E a imobiliária Opus Verde? Para que serve uma imobiliária LGBT? Em tempos já funcionou, ligada à Opus Gay. Será que é frequente um senhorio recusar alugar um apartamento a um casal do mesmo sexo? António Serzedelo, presidente da associação, explica que a existência da imobiliária tinha a ver com a decoração excêntrica das casas. "Há certos 'gays' que gostam de ter objectos estranhos em casa e têm de os esconder cada vez que o senhorio quer mostrar a casa a alguém", conta, enquanto mostra uma estátua de uma figura masculina bastante fálica como exemplo. "Com uma imobiliária LGBT não se tem de esconder os objectos à pressa.""Os espaços especializados servem para as pessoas saberem que há outros e outras como eles e elas, para se conhecerem e para se protegerem da homofobia. Não são necessariamente guetos; são também zonas libertadas", defende Vale de Almeida, antropólogo e activista do movimento LGBT."Não se pense que estamos a perpetuar guetos. Há situações em que não estamos para ser insultados", exclama Manuel Morais, presidente da direcção da associação ILGA Portugal. Sobre os estabelecimentos, eventos, associações e bairros LGBT (como existe, por exemplo, na vizinha Madrid), Manuel Morais diz que "não se trata de um gueto, mas de uma vizinhança onde as pessoas possam estar à vontade para dar a mão. É um porto seguro".

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