Bem-vindos à casa da infelicidade de Todd Solondz
Este filme perturbou: "Palindromes", de Todd Solondz. Sabendo-se que num festival há sempre canto reservado para fabricar "filmes escândalo" (a imprensa italiana que cobre o Festival de Veneza é especializada em inventar todos os dias um "film scandalo", um intérprete num "ruolo scandalo"), não havia nada de programado na inquietação dos rostos à saída da sessão em que a imprensa acabara de ver o último filme do cineasta americano (concurso). Entre desnortes para vários gostos, havia dúvidas existencialistas e outras mais básicas, como esta: porque é que uma personagem, uma rapariga de 12 anos que quer ter um filho, é representada por várias actrizes e fisicamente tão diferentes?Bem-vindos à casa de Aviva, a adolescente de "Palindromes". Qualquer coisa não bate certo logo na primeira cena, porque Aviva é uma gorduchinha negra e os pais são brancos (a mãe é interpretada por Ellen Barkin). A surpresa pode ser atribuída à falta de imaginação do espectador... mas não, porque sequências mais à frente Aviva é ruiva e sardenta (e com corpo de jovem manequim), e depois volta a ser negra mas num corpo obeso. E ainda há-de aparecer Jennifer Jason Leigh a fazer de Aviva, e por mais imaginativo que se seja, não, Jennifer Jason Leigh não é uma actriz de 12 anos. Aviva é um "palíndromo" humano (daí o título do filme e o seu programa existencial). É como aquelas palavras que lidas num sentido ou no outro (como "Ana", como... "Aviva") são sempre a mesma. Branca, negra, magra, gorduchinha, Aviva continua inflexível no seu desejo de engravidar, mesmo se as consequências de um aborto tornaram esse facto fisicamente impossível - no meio da desolação monstruosa dos filmes de Solondz é essa crença, chamemos-lhe assim, que salva. Eis o caso de Aviva: foge de casa, porque os pais são liberais mas não concebem que ela conceba com tenra idade e fazem-na abortar; o seu périplo fá-la ser violada (para ela foi um acto de amor) e atira-a para um rancho evangélico onde uma família recebe deserdados como ela e incapacitados físicos, protegendo as "crianças que nasceram e mesmo as que não nasceram" - protege as que "não nasceram" matando quem praticou o aborto. No fim, a adolescente gorduchinha negra regressa para insistir: quer engravidar para poder amar e ser amada.Criando aquele tempo inerte, na duração das cenas, para que o espectador oscile entre a repulsa e a solidariedade - e para que tome consciência dessas fronteiras com culpa e dúvida - Solondz extrema o teste. Este filme é um tubo de ensaio. A variedade de actrizes para uma personagem não é mais do que uma forma de provocar reacções, desde logo epidérmicas, pelo corpo (e cor da pele) que aparece no ecrã: por exemplo, no rancho evangélico, com os seus deserdados liliputianos, não é por acaso que Aviva aparece em versão obesa, gigantesca, como Gulliver, e negra.Tendo definido o seu universo de forma retumbante em "Welcome do the Dollhouse" (1996) e "Felicidade" (1998), Solondz, judeu, obsessivo, não mais saiu desse território alternativo onde se redefinem os limites da sexualidade e da moral - não tem querido sair, variando a partir daí. "Palindromes" é mais do mesmo (aborto, pedofilia, incapacidades físicas) mas com uma distância analítica arrepiante. Quem está em análise é o espectador. Todd Solondz, cineasta, é um palíndromo: de uma forma ou de outra, sempre o mesmo. A angústia nos rostos de quem acabava de ver o filme espelhava a condição de quem fora submetido ao teste. Mas também a inquietude perante uma obsessão, uma solidão, que se revelara no ecrã de forma tão desarmada como as personagens. "Palindromes" não tem distribuidor americano assegurado. Há quem suspeite que os ecrãs americanos dificilmente passarão o filme.