Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont Cântico do mal

Aos nove anos descobri Salgari, aos catorze a matemática, aos dezoito os Monty Python e aos vinte e dois "Os Cantos de Maldoror". Embora não seja muito do género de sair à noite, lá fui encontrando gente com quem partilhar estas paixões - excepto a última. Ora, uma paixão que não se partilha não está completa, como qualquer um sabe: exige um círculo de amigos sorridentes e aprovadores que aguentem a pé firme a nossa eloquência extasiada - não por amizade, é certo, mas porque esperam assim garantir audiências, quando for a sua vez de se extasiarem eloquentemente. Adiante.Já tinha havido a segunda estrofe do Canto IV ("Viam-se no vale, maiores que dois alfinetes..."), na "Antologia do humor negro" de André Breton, e mais tarde, num volume da saudosa Colecção Meia-Noite da Arcádia, a última estrofe do Canto V - a da aranha. Mas só conheci verdadeiramente "Os Cantos de Maldoror" numa noite em que um amigo me leu a estrofe treze do Canto II. Recordo-o, não pelo amigo, nem pela noite em si, mas pela época em que aquela noite se insere: é que por essa altura e por acaso (creio; nestas coisas, convém não se ser excessivamente dogmático), eu tinha acabado de conhecer a música dos Velvet Underground.Falta ainda um elemento que explique a importância desta ligação: a propósito do primeiro disco dos Velvet Underground, alguém (ao que consta, Brian Eno) teria afirmado que poucos o teriam comprado, mas cada um desses poucos formou a sua própria banda. A frase, já na altura em que foi dita, era, obviamente, exagerada - quanto mais agora, com o prestígio (mais que merecido, aliás) que têm os Velvet Underground. Em rigor, tratava-se de uma homenagem, cujo exagero formal compensaria o excessivo desinteresse criado à volta da sua música - isto dizia eu que, tendo ouvido o primeiro disco dos Velvet Underground, não pensara sequer em formar uma banda. Preparava-me, portanto, para ultrapassar a frase de Brian Eno (ou não), quando recebi o impacto da leitura d' "Os Cantos de Maldoror".Poderia, agora, discorrer longamente sobre a importância histórica, literária, estética, filosófica, da obra de Lautréamont, o pseudónimo literário de Isidore Ducasse (Montevideu, Uruguai, 1846-Paris, França, 1870), embora, se o fizesse, estivesse a iludir a verdadeira questão: eu nunca tinha lido nada assim e tinha a certeza que daí em diante só quereria escrever como Lautréamont (pré-requisito que a leitura forneceu a essa certeza: era possível usar a escrita daquela maneira). E foi então que entendi perfeitamente a frase - de Brian Eno, ou não: uma proposta inovadora pode exigir-nos, mais do que ser apreciada, ser continuada. O amigo que me apresentou a obra partilhava comigo o gosto saudável pela literatura fantástica, e foi assim que li, pela primeira vez, "Os Cantos de Maldoror": obra-prima da literatura fantástica. Sejamos justos: o rótulo, numa perspectiva de catálogo, nem é descabido; no entanto, o grande mal dos catálogos é a tendência irritante que têm para reduzir tudo a um mínimo denominador comum, apagando as diferenças que tornam únicas as peças do seu elenco. Dizer que "Os Cantos de Maldoror" é uma obra-prima da literatura fantástica é, simultaneamente, tão acertado e tão idiota como dizer que "Alice no País das Maravilhas" é literatura infantil, ou que o travesseiro de Sintra é um bolo tradicional da doçaria portuguesa.Assim catalogados, "Os Cantos de Maldoror" parecem ser, sobretudo, literatura fantástica - quando isso é o que eles são no mínimo: duzentas e tal páginas depois das palavras "Queira o céu que o leitor, tornado audaz e momentaneamente feroz à semelhança do que lê...", eu não me tinha limitado a acrescentar mais uma "obra-prima da literatura fantástica" à minha biblioteca do género: tinha aprendido a ler outra vez.Note-se que, para um apreciador de emoções fortes (como era o meu caso), "Os Cantos de Maldoror" não estão nada mal: ao longo das suas sessenta estrofes (é assim que o autor se refere aos fragmentos narrativos de extensão irregular que compõem os seis Cantos), percorremos uma extraordinária galeria de horror, violência e crueldade, povoada de monstros híbridos, que tanto podem ser vítimas, como carrascos, em cenas animadas por uma mistura explosiva de maldade, ganância, cobardia, ou estupidez.Porém, a acumulação de elementos horríveis e a repetição dos quadros e situações produzida pela estrutura fragmentada da obra resultam, passado o choque inicial, num efeito de estranheza, primeiro, e de reconhecimento, depois, que banaliza aquele mundo grotesco, deixando a atenção do leitor disponível para o trabalho da escrita que o suporta.Existe uma passagem no Canto IV, estrofe 2, que ilustra bem a distinção e a hierarquia que o próprio autor estabelece entre o que é dito e o modo como é dito (embora seja fácil citar "Os Cantos de Maldoror" para, indiferentemente, apoiar ou refutar uma tese): "(...) não se está mesmo a ver que o laborioso pedaço de literatura que estou compondo, desde o início desta estrofe, seria talvez menos apreciado se se apoiasse num espinhoso problema de química ou de patologia interna?" Ou seja, problemas espinhosos é uma coisa, literatura é outra coisa; aqueles servem de apoio a esta; e esta é que deve ser apreciada.Tudo o que atrás foi dito pressupõe uma organização rigorosa, uma atenção vigilante ao desenrolar do espectáculo. Esse papel cabe ao narrador, que se comporta como um guia, um mestre de cerimónias, não poupando explicações, antecipando as questões que os leitores poderiam colocar, ou dando-lhe, mesmo, instruções. A distância, por vezes chocante, a que se coloca do que nos é apresentado; o tom desenvolto e irónico em que comenta os episódios que vão sendo narrados, fazem dele, simultaneamente, o criador da obra e o seu primeiro crítico. Ao ler "Os Cantos de Maldoror", somos constantemente alertados para o carácter artificial, fabricado, do horror que nos é apresentado - como o amigo de sangue-frio que, ao nosso lado, durante a projecção de um filme de terror, nos lembra que o que vemos é apenas um filme, quando a tensão no ecrã se torna insuportável.Por muito dignas de elogio que possam ser as competências do narrador d' "Os Cantos de Maldoror", a sua capacidade de intervenção varia, ao longo da obra. Nos três primeiros Cantos, a sua actuação é, por vezes, completamente desastrada, ao ponto de haver passagens em que não se distinguem o narrador de Maldoror, a personagem (o melhor exemplo será, porventura, a estrofe treze do Canto II), que procura usurpar o controlo da narrativa. Já os dois Cantos seguintes são mais calmos: diminui o ritmo da acção e o número de personagens em cena, reduzindo-se assim o espaço de manobra a Maldoror, ao mesmo tempo que se alongam os seus comentários do narrador. Esta estratégia correctiva triunfa no Canto final (o VI), quando narrador e personagem ocupam, finalmente, os seus lugares tradicionais. Nesta perspectiva, "Os Cantos de Maldoror" serão, afinal, a demonstração do lento e penoso processo de aprendizagem de um ofício: o de escritor.É curioso notar que, embora adversários em luta pelo controlo da narrativa, desde que Maldoror e o narrador sejam considerados no seu espaço próprio - a acção para a personagem: a história; a narração para o narrador: o discurso - , apresentam o mesmo comportamento: são ambos elementos perturbadores. Se Maldoror é o génio do mal que aterroriza os homens, quer pelos seus actos, quer pelas lendas terríveis que circulam a seu respeito, o narrador apropria-se da linguagem, criando novos e estranhos efeitos que práticas posteriores aplaudiram e sancionaram: a vulgaridade das metáforas (referir um navio naufragado como indo "passar o resto dos seus dias no rés-do-chão do mar"); as comparações absurdas ("belo como a retractilidade das garras das aves de rapina"); o cruzamento de registos discursivos de proveniências diversas; o plágio (algumas passagens d' "Os Cantos de Maldoror" foram identificadas como a cópia integral e descontextualizada de obras científicas)... Nenhum interdito parece capaz de deter a escrita de Lautréamont na elaboração de uma paródia à literatura fantástica (o seu ponto de partida, mas nunca o de chegada), aos seus códigos temáticos e linguísticos, à literatura em geral - o trabalho paradoxal de um bárbaro civilizado, de uma fúria elegante, de um vandalismo "dandy".Via-me assim, de súbito, na posse do conhecimento de um livro estupendo, que era urgente dar a conhecer, e a braços com um problema: como pode ser descoberta uma obra entalada no meio de centenas de títulos com os quais partilhava o género e pouco mais, inacessível, por isso, aos distraídos e aos indiferentes à literatura fantástica? Não dispondo de meios de publicidade institucional (nem a obra, nem o autor pareciam ser conhecidos), restava-me a divulgação porta a porta. Decidi, pois, lançar-me numa intensa campanha de alfabetização: por muitas críticas que me possam dirigir todos quantos me foram próximos nessa época, ninguém se poderá queixar por não ter "Os Cantos de Maldoror" - aos quais tinha o cuidado de acrescentar dedicatórias que mais pareciam manuais de instruções de uso.Bati as livrarias de Lisboa, em busca de quantos exemplares pudesse arrebanhar; cheguei a ter três em casa, de reserva, para as emergências - nunca se sabe quando é que vamos conhecer alguém interessante... Esgotei as duas edições da Moraes: último exemplar da primeira edição (a da capa castanha horrível)? Livraria do Apolo 70; dois últimos exemplares da segunda edição (a da capa vermelha)? Livraria 111. E sempre, no fundo desta fúria divulgadora, a mesma secreta inquietação, que só bem mais tarde compreendi: incapaz de explicar em que consistia o carácter único da minha própria admiração, eu queria que os vários leitores d' "Os Cantos de Maldoror" me transmitissem, depois, as suas impressões, em termos que me permitissem reconhecer o meu próprio entusiasmo.Porém, este efeito perverso da minha militância pró-Lautréamont falhou completamente o alvo. A maior parte dos neófitos manifestou decepção, aborrecimento, estranheza não entranhada - em suma: uma vaga (ou viva) irritação, que levou muitos deles a nem acabar a leitura. As raríssimas vozes que me garantiram o seu interesse fizeram-no em termos tão calmos e polidos que acabei por preferir a reacção daqueles que me insultaram aos berros, por eu andar a apregoar uma obra cujos méritos estavam muito aquém do vigor empregue na sua defesa.Desisti, é claro. Guardei Lautréamont para mim e recusei-me cuidadosamente a referi-lo, mesmo quando as circunstâncias o encorajavam. Guardei-o, juntamente com um profundo rancor contra a corja de pobres diabos que nem sequer se apercebem dos tesouros que têm ao alcance da mão e eu para aqui a dar pérolas a porcos não admira que o mundo esteja como está.Depois, com o tempo, frágeis, foram-me chegando criaturas de várias procedências. Em todas elas, pareceu-me reconhecer o brilho nos olhos, a febre na voz. Traziam livros, com longas dedicatórias, e davam-mos - coisas chochas, maçudas; "giras", algumas poucas. E quando me perguntaram o que é que eu tinha achado desgostei-as profundamente, e quando percebi o que se estava a passar comecei a mentir um bocadinho, para o desgosto ser menor. Por isso, quando Philippe Sollers escreveu em "Le Monde", a propósito d' "Os Cantos de Maldoror", "[p]ode-se dar como provado que este livro de lógica pura está feito secretamente para seis ou sete (no máximo) indivíduos por século", concordei inteiramente com a caracterização do livro, embora achando a estimativa demasiado optimista.NOTA FINAL: "Os Cantos de Maldoror" estão, de novo, disponíveis em português (Edições Quasi, 2004, a luminosa tradução de Pedro Tamen que já fora publicada na Moraes e na Fenda). Sugere-se, pois, aos interessados no posto de leitores da obra que se apressem: um século é muito longo, e o número de vagas reduzido. Rui Fabião, autor da tese de mestrado "Narrador, Personagem e Pessoa Verbal em 'Les Chants de Maldoror'" (defendida na Faculdade de Letras de Lisboa em 1997), é professor de português e francês no ensino secundário .

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