Nick Drake
O "Libération" decidiu que Nick Drake se matou. "Trinta anos após o seu suicídio...", começa o breve texto a propósito do álbum de raridades e uma canção inédita "Made to Love Magic", recentemente editado. Mais prudente, "Le Monde" diz que as circunstâncias da sua morte são um mistério, mas chama-lhe o "Werther de Cambridge". Já houve quem falasse em James Dean, e (apesar dos franceses serem especialmente bons nisto) não foi um francês. A agregação de artistas-mito, reais ou imaginários, é uma tentação universal. Dean era de carne e osso (e gostava de conduzir, como Drake), Werther só se mata por amor numa novela de Goethe. Belos jovens mortos, eis tudo.Nick Drake tinha 26 anos quando morreu, na madrugada de 25 de Novembro de 1974. O coração parou devido a uma overdose de um antidepressivo que ele estava a tomar, por receita médica, Tryptizol. O biógrafo Patrick Humphries inclina-se para a hipótese de um acidente, e explica porquê ao Y: "Um dos seus amigos de Cambridge, Brian Wells, hoje psiquiatra especialista em comportamentos aditivos, acredita que foi uma overdose acidental. Cito-o no livro, explicando que o Tryptizol é um antidepressivo poderoso, que deixa uma pessoa um pouco zonza. Acredito que foi acidental." Um esquecimento de que já tomara o medicamento, ou uma multiplicação da dose para combater a insónia, admite Humphries. A irmã de Drake, Gabrielle, é citada num site de fãs como tendo dito que prefere a hipótese de suicídio à ideia de que foi tudo um erro terrível. Voluntária ou acidental, a morte de Drake não deixou legiões prostradas. Drake não era Hendrix, Joplin, Morrison, mitos ainda em vida. Não experimentara sequer um pouco da relativa aclamação que Tim Buckley chegou a ter. Morreu jovem e quase desconhecido, deixando três álbuns que venderam uns insignificantes milhares de cópias. "A época em que fez os seus discos é muito diferente da cena musical de hoje", tenta justificar Patrick Humphries. "No fim dos anos 60, princípio dos 70, havia muito menos formas de ouvir o tipo de música que fazia. Tinha pouca passagem na televisão, alguma na rádio, a imprensa musical britânica estava mais preocupada com as tabelas de venda." A natureza reservada, não-competitiva de Drake - no colégio, sendo um atleta, especialmente um "sprinter" notável, não tentava bater recordes - terá contribuído para esse insucesso, que não se verificou noutros cantores classificados na "folk"? "É verdade que contemporâneos como Cat Stevens, Richard Thompson, John Martin, Carole King, James Taylor, Paul Simon, Joni Mitchell ou Al Stewart tiveram sucesso", lembra Humphries. "O que tem tanto a ver com a qualidade da música deles como com a capacidade e vontade para tocarem ao vivo. Para a música alcançar uma audiência isso era importante. Era ouvida ao vivo, depois é que as audiências chegavam aos discos. E Nick não gostava realmente de tocar ao vivo. Essa falta de vontade, essa relutância teve efeito na sua falta de sucesso. Depois, há algo de muito íntimo na música de Nick, que talvez não pudesse ser traduzido numa actuação ao vivo. Era música para ser apreciada mais em disco." Não é mesmo nada provável que venham a aparecer DVD piratas com actuações ao vivo de Nick Drake (como até de Tim Buckley já circulam) e há pouquíssimos registos de declarações suas. É impossível apanhá-lo à distância. Talvez por isso a biografia de Humphries ("Nick Drake", Bloomsbury, Londres, 1997) o deixe tão intacto. "Five Leaves Left" (1969), "Bryter Layter" (1970) e "Pink Moon" (1972) são os três álbum que Drake publicou. Costumam ser arrumados na "folk", mas não há qualquer razão para os ouvintes de "folk" os amarem mais ou melhor do que os ouvintes de rock, bossa nova, jazz, música renascentista ou barroca. Drake ouviu muito Bob Dylan, Miles Davis, John Coltrane, Astrud Gilberto, Stan Getz, William Byrd (1539-1623, o mais conhecido compositor da época isabelina), e tudo isso também está nestes três discos, de alguma maneira. Na véspera de morrer tinha estado a ouvir Bach, um dos concertos brandeburgueses.Estes discos formam um trio extraordinariamente coeso - é difícil eleger um, são um todo, um som, o som de Drake - e resistente ao tempo. Não é evidente que tenham sido gravados há 30 anos ou agora. Talvez seja difícil imaginar Drake em cima de um palco com a fúria arrebatadora de um Devendra Banhart. Mas ouvidos em disco, nas canções só voz e guitarra crua, Drake, o inglês que morreu há 30 anos, e Banhart, o americano que ainda não fez 30 anos, podiam ser contemporâneos. Talvez trocassem poemas de William Blake.Bastaria um disco e alguém a ouvi-lo para que a música fizesse o seu caminho, para além da morte de Drake. Mas, em 1979, o lançamento de "Time of No Reply", uma colectânea de 14 canções, entre as quais sete inéditas, ajudou à multiplicação da descoberta. Seguiram-se outras colectâneas, individuais ou colectivas, e de repente Nick Drake era citado por toda a gente (e reparem em tudo o que os separa): Elton John, Paul Weller, Jackson Browne, Everything But The Girl, Tom Verlaine, Matt Johnson, Belle and Sebastian, Kathryn Williams, Lucinda Williams, Gomez, Radiohead, Coldplay, R.E.M. Robert Smith, Brad Mehldau, Kate Bush, David Sylvian, Norah Jones, Kings of Convenience, Air, Beth Orton, Nigel Kennedy, John Cale... Beck gravou aquela canção, "Round the bend", que é Beck reincarnando em Drake, e Beth Gibbons escreveu uma canção chamada simplesmente "Drake". "É maravilhosa, mas ao mesmo tempo um pouco desorientante, a forma como Nick é visto agora", diz Humphries. "A única comparação que consigo fazer é com a cantora Eva Cassidy, cuja carreira começou apenas depois de ela morrer [em 1996]. Enquanto que Jimmy Hendrix, Brian Jones, Jim Morrison, Janis Joplin, Gram Parsons, Tim Buckley morreram jovens, mas tinham tido algum sucesso em vida, a carreira de Nick é inteiramente póstuma. Há sempre algo muito apelativo em jovens artistas que morrem. Isso é parte do apelo de Nick, mas penso que há algo na sua música muito intemporal, que parece chegar às pessoas. Há algo de único e inimitável que faz com que não soe semelhante a ninguém, o seu fraseio é muito inglês, a sua forma de tocar guitarra muito própria, o arranjo das canções..."A colectânea que acaba de sair reúne 13 canções. Dez estão em "Time of No Reply", em versões ou "takes" diferentes. Dua, estão em "Five Leaves Left", em versões diferentes. A última, "Tow the line", é inédita. Bastaria essa para valer a pena o álbum. "Tow the line" foi registada em Julho de 1974, poucos meses antes da morte de Drake, portanto. Presume-se que tenha sido a última canção que ele gravou. Foi encontrada pela equipa que preparou esta colectânea - que inclui Robert Kirby, amigo de Drake dos tempos de Cambridge, e seu orquestrador em várias canções - numa fita de "takes" não usadas que continha outra canção também aqui incluída, "Hanging on a star". É o puro Drake sem orquestração na sua fase mais tardia, a voz de um gentil homem, e uma guitarra intensa.Do primeiro Drake de todos são as duas versões de "River man" e "Mayfair" aqui incluídas. Na Primavera de 1968, Drake apareceu nos aposentos de Robert Kirby em Cambridge, com a guitarra. Conheciam-se há pouco. Kirby tinha um piano e um velho gravador e registou ali mesmo várias canções que Nick Drake compusera. Parte destas gravações nunca foi recuperada, mas Kirby conseguiu encontrar duas. "River man" - a segunda canção do álbum de estreia, "Five Leaves Left" -, nesta "take" sem orquestração, é um diamante em bruto. Um rapaz sentado num quarto em Cambridge com uma guitarra nos braços, sem tempo, sem morte. Uma versão extraordinária.As "takes" de "Joey" e "Clothes of sand" aqui incluídas foram gravadas no fim de 1968. Não chegaram a entrar no alinhamento final de "Five Leaves Left" - tal como "The thoughts of Mary Jane", vieram a entrar em "Time of No Reply".Estranhas são as remisturas de "Magic" e "Time of no reply" feitas para esta colectânea. Começa por não se perceber porque "I was made to love magic" passou a chamar-se apenas "Magic". Depois, os arranjos orquestrais que Robert Kirby recuperou de uns projectados então - mas que nunca vieram a ser usados - não parecem substituir com vantagem os de Richard Hewson, que estão em "Time of No Reply". A flauta, em especial, não funciona.Mais interessante é a versão de "Three hours" gravada em Março de 1969 com "Reebop" Kwaakhu Baah nas congas e um flautista não identificado. Trata-se de um registo feito dois meses antes do que veio a fazer parte de "Five Leaves" (com músicos diferentes). Fazem ainda parte deste novo álbum "Black eye dog", "Rider on the wheel" e "Voices" - que em "Time of No Reply" tem outro título, "Voice from the mountain" -, gravadas em Julho de 1974, na mesma altura que a inédita "Tow the line"."Nick de alguma forma estranha estava fora de tempo", diz Kirby. "Tínhamos a sensação dele ter nascido no século errado. Se tivesse vivivo no século XVII, na corte isabelina, com compositores como William Byrd ou Dowland, estaria bem. Era elegante, sincero, um romântico - e, ao mesmo tempo, muito cool. O perfeito isabelino."