Reggiani: O último gigante
uando Chirac o condecorou, em Janeiro de 2003, chamou-lhe "artista total". À parte as condecorações, que não se lhe colavam à alma, a designação era verdadeira. Actor celebrado, mesmo quando cantava (das canções fazia pequenas e magníficas peças de teatro) Serge Reggiani chegava aos 81 anos com a sensação de dispor de uma velhice feliz. Queria viver ainda, e muito, talvez até aos 100 anos, quando o coração lhe trocou as voltas, na noite de 22 para 23 de Julho, com uma paragem cardíaca. De Paris, onde vivia e onde a morte o surpreendeu, deixa ao mundo um legado imenso: inúmeros papéis no cinema e no teatro, muitos discos, espectáculos sem fim, alguma pintura. E deixa também um testamento escrito, em forma de livro epistolar, por onda passa muita da sua vida e dos personagens que a cruzaram: "Último Correio Antes da Noite" (Campo das Letras, 1996). Onde escreveu: "Morte, não acredito em ti. Não te levarei a sério quando me vieres puxar pelos pés dizendo-me: 'Está na hora'. Vida, vai ser preciso separarem-me de ti com tenazes em brasa, como nos maus romances." As tenazes venceram. Mas ele também, ao viver até ao último minuto como se tivesse ainda muitos anos pela frente.Nascido em Reggio Emila, no norte de Itália, a 2 de Maio de 1922, Serge foi levado ainda muito novo para França, quando os pais, Ferrucio e Letizia, deixaram a Itália fascista (o pai detestava Mussolini). Instalaram-se na Normandia, tinha ele oito anos, e depois foram para Paris onde abriram um salão de cabeleireiro para homens. Viveram tempos difíceis mas Serge, na escola, destaca-se como o melhor da classe, embora fosse o boxe o seu principal sonho. Aos 13 anos, deixa a escola e faz-se aprendiz de cabeleireiro, com o pai.Mas não dura muito a experiência. Em 1939, inscreve-se no Conservatório de onde sai com duas distinções, na comédia e na tragédia. Seria assim, à luz desses dois prémios a sua vida. Andará pelo cinema e pelo teatro, e muito, antes de pisar outros palcos, os da canção, à qual se prenderá por amor, como por amor se prendeu a três mulheres. De 1942 a 1994 entrou em inúmeros filmes e só os nomes de parte dos seus realizadores davam uma pequena enciclopédia: Marcel Carné, Lucchino Visconti, Luigi Comencini, Ettore Scola, Jean-Pierre Melville, Pasolini, Damiano Damiani, Martin Ritt, Claude Chabrol, Costa-Gavras, Marco Ferreri, Claude Lelouch, Leos Carax, Theo Angeloupolos. Mas também no teatro deixou fortes marcas, representando Shakespeare ou Sartre de modo exemplar. A sua capacidade de "diseur" levou-o ainda a dar voz a poetas, seguindo apenas a música única das suas palavras (alguns deles também cantou, inúmeras vezes): Apollinaire, Rimbaud, Prévert, Cocteau, Baudelaire, Camus e, claro, Boris Vian.Em 1959 grava uma vintena de canções para a rádio mas será preciso esperar até 1963 (já casado pela segunda vez, com dois filhos do primeiro casamento e três do segundo) para que, a convite do director artístico Jacques Canetti, se inicie de vez na canção. O primeiro passo, com o disco Serge Reggiani Chante Boris Vian", de 1964, é um sucesso de vendas e de crítica (ganha o prémio Charles Cros). É assim que, aos 43 anos, Reggiani entra triunfante numa nova carreira da sua vida: a de cantor. Mas a pele de actor, essa jamais a despira. No palco, como foi possível ver em Lisboa, a 13 de Março de 1982, num extraordinário concerto no Coliseu dos Recreios, cada canção de Reggiani ("L'Italien", "Madame nostalgie", "La putain", "Les loups", "Ma liberté") soava como uma pequena e mágica peça de teatro, os personagens ganhavam vida, a música saia-lhe pelos mesmos poros por onde corriam fios de suor que lhe alimentavam a voz e a noite. No princípio dos anos 70, Reggiani era já grande entre os grandes. Em 1975, começa a fazer duetos com o filho, Stephan, apresentando-se com ele em palco. Mas em 1980, Stephan suicida-se e Serge lança-se numa descida aos infernos, afundando-se no álcool.No livro já citado, em carta dirigida a si próprio onde fala de Reggiani como se fosse um terceiro, sintetiza a vida deste modo: "Uma verdadeira vida de louco! Um tipo que faz de actor durante mais de cinquenta anos e praticou a cantilena durante um quarto de século. Um fulano que deixou a Itália ainda rapazinho para acabar a vida a cantar uma coisa que se chama 'L'Italien'. Um homem que casou com duas mulheres para viver feliz com uma terceira, e sem casar!" Desta terceira mulher, Noëlle Adam-Chaplin, por quem se prendeu loucamente ainda ela era casada, deixou um retrato apaixonado: "Amo-te e desejo-te como nunca amei nem desejei quem quer que seja neste mundo. Tenho a impressão de cantar menos bem quando não estás ao meu lado, nos bastidores; de pintar de través se o teu olhar não guia o meu pincel; de escrever uma coisa qualquer se tu não estiveres."Noëlle foi, para ele, uma salvação de um abismo em se afundou, após a morte do filho: "O álcool fez-me andar de clínica em clínica, de cura de desintoxicação em tratamento psiquiátrico. O teu amor foi o fio de Ariana que me permitiu encontrar a saída desse labirinto infernal." Mas a noção de ter recuperado a vida deu-lhe outra força: "Fui salvo pelos médicos, fui salvo por aqueles que me amam. Também eu quero viver, viver, viver." Ademais, recuperou o gosto pela música, voltando a gravar. Percebia que o corpo não lhe deixava ar todos os passos que daria antes mas, mesmo assim, sentia-se feliz: "Sinto-me um náufrago da velhice, mas numa ilha que não está deserta: há Noëlle que é tudo, Quin-Quin o gato [a quem escreve também uma carta], que é um pequeno nada muito agradável, e os meus filhos que por vezes fazem escala." Nessa ilha não deserta, cabia ainda a pintura, a que entregava antes do anoitecer: "A pintura tornou-se a minha companheira dos velhos dias, o meu pecado de velhice, e é a vida que eu vejo deslizar na ponta do meu pincel, a vida cuja cor e verniz eu escolho a partir de agora."Numa das vinte cartas de "Último Correio Antes da Noite", precisamente a que dirige a si mesmo, ele conta que durante as filmagens de "Amantes de Verona" o tal personagem de que ele se distancia para melhor rever a sua vida, ele próprio, "deu uma escapadela a Veneza, aos sopradores de vidro de Murano, e tentou a arte difícil dos vidreiros. Queria modelar uma garrafa, fina e transparente, mas não deixou aquecer suficientemente o vidro e só conseguiu soprar um garrafão grosso e disforme... 'A minha vida é assim, disse ele, garrafão simpático e sólido, eu que sonhava com um cristal perfeito'." Agora que o cristal se partiu, ainda que em sonhos, ficará para sempre o seu brilho. Uma luz.