"Quando o Carlinhos aparecia para tocar, era um deus"
"Carlos Paredes era de uma dimensão muito difícil de definir. O Carlos vagueava no espaço, um ser etéreo. Ele não estava cá, estava para além e acima de nós. Pairava no espaço. Quando o Carlinhos aparecia para tocar, era um deus". Foi assim que Luiz Goes, mestre do fado coimbrão e um dos primeiros músicos a tocar com Paredes, definiu a personalidade musical e humana do autor de "Verdes Anos".A música deste "ser etéreo" que, como dizia Goes, parecia pairar no espaço enquanto tocava, queima-nos como uma chama, lançando-nos de forma lancinante para o âmago de uma solidão partilhada com muito poucos. Uma chama que brilhou entre 1958 e 1993, ao longo de 35 anos de carreira ao longo da qual Paredes deixou bem vincada a sua arte, apesar de uma discografia de originais relativamente escassa. A primeira fase da sua obra é marcada pelo fado de Coimbra. São os tempos do típico "rubato" coimbrão onde são já visíveis os sinais de génio que se vislumbram no EP "Carlos Paredes" de 1962. A forma como Paredes desenvolvia as melodias, em rapsódia, entram em conflicto com os dogmas da guitarra. Hugo Ribeiro, engenheiro de som presente em inúmeras gravações, ao ouvi-lo pela primeira vez numa sessão em casa de Amália, comentou: "Aquilo não tinha nada a ver com guitarra portuguesa. Ninguém tocava daquela maneira". "Guitarra Portuguesa" (1967) é o álbum de estreia e um marco da música portuguesa. Nele cruzam-se a música tradicional portuguesa, da Idade Média e da Renascença. Paredes encontrara na guitarra de Fernando Alvim o seu parceiro ideal e os dois parecem dançar na forma como as cordas se entrelaçam num destino comum. Alguns segredos técnicos ajudaram a criar esta obra-prima. Recordava Hugo Ribeiro: "O Paredes não custava nada gravar. A grande dificuldade era conseguir ouvir a guitarra através dos altifalantes e da aparelhagem como se estivesse a um metro de distância. Eu procurava ouvir a guitarra através do microfone do 'ponto de vista' dos meus ouvidos em relação ao instrumento. Acabei por arranjar uma solução: fui vendo onde ouvia bem a guitarra, o que era já muito longe de Paredes. E pus lá um microfone." "Movimento Perpétuo", de 1971, é outro clássico. É o álbum em que a veia improvisadora de Paredes se sedimenta num estilo reconhecível, feito de reminiscências de frases antigas projectadas, paradoxalmente, de acordo com um desejo de superação e descoberta constantes. "Quando entrávamos para estúdio", segundo Hugo Ribeiro, "o Paredes dizia sempre que íamos fazer experiências, nunca era para gravar. 'Vamos ver, se calhar, talvez...', dizia ele, e ficávamos sempre em suspenso, com a sessão adiada para o dia seguinte. O Paredes tocava por ali fora e no outro dia vinha ouvir. E depois dizia-me: 'Oh Ribeiro, você tinha razão! Aquilo ficou bem!'. Ele entusiasmava-se a tocar. Aquela força anímica era fenomenal". Em "Na Corrente", gravado em 1973, Carlos Paredes reformula alguns temas para inclusão nos posteriores, "Concerto em Frankfurt e "Espelho de Sons", bem como para uma edição exclusiva alemã, "O Oiro e o Trigo"."É Preciso um País" (1975), com poemas e voz de Manuel Alegre, e "Que Nunca Mais" (1975), de Adriano Correia de Oliveira, são aventuras mais ou menos marginais no movimento de Paredes. No primeiro, Carlos Paredes socorre-se do "guitarrão", uma guitarra portuguesa modificada que abrangia as escalas da guitarra clássica e da guitarra portuguesa. Com a sua proverbial generosidade e o empenhamento político, deu-se de corpo e alma a uma luta que também foi a sua mas da qual outros se aproveitaram. Já o encontro, em dois temas, com Adriano Correia de Oliveira, seu "companheiro de estrada", está mais próximo da corrente politizada da MPP do pós-25 de Abril, com uma veia tradicional menos dependente da mensagem veiculada pelo tom declamatório de Alegre. A gravação ao vivo de 1982, na Ópera de Frankfurt, que deu origem a "Concerto em Frankfurt", foi feita sem o conhecimento de Paredes, para não o enervar, e nele encontramos um músico em que a tristeza substituíra já a melancolia romântica e o poder de afirmação de "Guitarra Portuguesa". É fado, escuridão a escorrer da guitarra. Paredes tocando como se adivinhasse já um desfecho trágico, numa luta titânica contra a tirania das notas, magoando-as porque elas o magoavam. Com o piano de António Victorino d'Almeida fez "Invenções Livres" (1986). Desse encontro, surgido como consequência do interesse manifestado por Paredes em encontrar pontes com outras músicas, resultou acima de tudo, a evidência de duas visões divergentes da música. Paredes tocava voltado para dentro, Victorino d'Almeida voltado para fora. As cascatas de piano afogaram a guitarra. E Paredes exigia, sem querer, subserviência. Ou aquela complementaridade que lhe era oferecida por Fernando Alvim. Em "Espelho de Sons" (1987), revisto e aumentado na primeira transição de LP para CD, descobre-se o guitarrista na sua melhor forma, conquistando a música um domínio de si que se estende às mais ínfimas "nuances". Paredes tornara-se senhor do seu destino enquanto músico. Sente-se a lucidez, a visão e a sabedoria do que antes era intuição e mediunidade. Paredes ataca as notas, já não para as fazer sangrar, mas para se afirmar como igual. A tragédia é integrada num patamar de existência superior. Paredes ganhara "Asas sobre o Mundo.Charlie Haden, nome histórico do contrabaixo no jazz, tentou caminhar ao lado de Paredes em "Dialogues". O contrabaixista cedeu ao guitarrista o maior espaço possível do alinhamento remetendo-se a um papel discreto. A improvisação, segundo Paredes, não segue os parâmetros do jazz. Diante da guitarra ergue-se um espelho. Onde se reflecte o mundo, mas só à sua imagem. Já fraco e nas mãos da doença. "Canção para Titi", de 2000, sobrevive como testemunho pungente de uma arte que procurou - e conseguiu - redimir o mundo da dor. Foi preciso montar "takes", colar frases e notas. Entre o cataclismo de amor que é "Guitarra Portuguesa" e a "Valsa diabólica" que é uma das múltiplas mágoas de "Titi", a música de Paredes cresceu, como escreve João Lopes no posfácio da antologia integral, "uma pura identidade em construção: uma música carnal, quase animista, ao mesmo tempo que cerebral, pedagogicamente a enunciar a sua própria ideia de liberdade (...) uma arte de não abdicar das razões da solidão". - Guitarra Portuguesa (1967)- Meu País-Canções (de Cecília Melo, 1970)- Movimento Perpétuo (1971)- É Preciso um País (com Manuel Alegre, 1975)- Que Nunca Mais (de Adriano Correia de Oliveira, 1975)- Concerto em Frankfurt (1983)- Invenções Livres (com António Victorino d'Almeida, 1986)- Espelho de Sons (1988)- Carlos Paredes/Artur Paredes (com Artur Paredes, 1988)- Dialogues (com Charlie Haden, 1990)- Na Corrente (1996)- Canção para Titi - Os Inéditos (2000)