O Sudão, a ONU e a preguiça dos conservadores
m editorial recente, José Manuel Fernandes (JMF) disserta sobre o conflito na região sudanesa de Darfur. O que deveria ter sido um alerta pedagógico para mais um dos muitos conflitos esquecidos na cena internacional, vem a revelar-se um mero pretexto para voltar a dois dos predilectos e mais estafados argumentos do conservadorismo político actual: a culpa é das Nações Unidas (como sempre, inaptas diante de catástrofes humanitárias) e, claro, lá no fundo é Huntington que tem razão ao entender que os principais conflitos contemporâneos são de origem civilizacional (sugere JMF que se trata de uma guerra inevitável por se situar "numa zona de fronteira do mundo islâmico").São dois argumentos que falseiam a realidade dos factos.1. Em primeiro lugar, a alegada matriz religiosa do conflito. Ao contrário da guerra entre o norte muçulmano e o sul cristão/animista, que dura há 21 anos, a religião não tem qualquer relevo enquanto fonte do conflito em Darfur: ambas as partes são maioritariamente muçulmanas. O âmago do conflito reside na diferenciação étnica, linguística e cultural entre as comunidades indígenas africanas, tradicionalmente sedentárias e camponesas, e as comunidades árabes, tradicionalmente nómadas e ligadas à pastorícia. Esta diferenciação genérica agravou-se dramaticamente desde a década de 80, com a degradação ambiental (secas e expansão do deserto) e com a proliferação de armamento ligeiro na região. À crescente disputa armada por acesso a terra e água, juntou-se a estratégia do governo central de progressivo favorecimento das populações árabes nas estruturas de poder local, onde, por norma, as populações indígenas africanas tinham mais peso. No último ano, este clima de discriminação política tem sido acompanhado por uma violenta tentativa do governo de esmagar a rebelião, usando as mesmas tácticas de guerra suja que caracterizaram durante anos o seu confronto com os cristãos e animistas do sul, designadamente uma limpeza étnica na região de Darfur, com especial incidência sobre as etnias africanas Fur, Masaalit e Zaghawa.2. Passemos agora à acusação de passividade da ONU face a crises humanitárias. O argumento é conhecido e tem servido de suporte à estratégia de legitimar um direito de intervenção unilateral dos Estados mais poderosos. O caso de escola é o do genocídio no Ruanda e JMF não se faz rogado em invocá-lo para reiterar a versão de acordo com a qual a ONU - e, em particular, o então responsável pelo departamento de peackeeping, Kofi Annan - surgem invariavelmente como os grandes culpados. Lamentavelmente, JMF dedica apenas uma linha ao papel dos Estados e não menciona sequer os membros do Conselho de Segurança, directamente responsabilizáveis pela manutenção da paz e da segurança internacionais. JMF esquece as várias obstruções diplomáticas no seio do Conselho de Segurança, praticadas em especial pelos EUA, no rescaldo da experiência desastrosa na Somália, e pela França, aliada do governo ruandês e com culpas objectivas no desenrolar deste genocídio. Ora, convém lembrar que não foi senão esta falta de vontade política dos Estados (e não da ONU enquanto tal) que determinou a manutenção das limitações ao mandato da UNAMIR - o que impossibilitou que se impedissem os autores das futuras atrocidades de aproveitarem o cessar-fogo e o próprio processo de paz para se rearmar - e que foi esta mesma falta de vontade política que, posteriormente, ditou a retirada de grande parte das tropas (de 2.500 para 270), precisamente na altura em que se impunha o seu reforço vigoroso, deixando a operação dramaticamente amputada na sua capacidade para travar o genocídio.É claro que a ONU não está isenta de culpas. A Organização não conseguiu entender a natureza do conflito, encarando-o como uma explosão repentina de ódios étnicos ancestrais e não como de facto era: um genocídio cuidadosamente orquestrado. A Organização falhou ao acomodar-se perante a inacção do Conselho de Segurança e ao lançar uma campanha de sensibilização da opinião pública internacional apenas depois do genocídio já ter sido iniciado. Mas lançar o odioso dos resultados sobre as Nações Unidas e ignorar a responsabilidade primária das principais potências mundiais é uma estratégia argumentativa preguiçosa e historicamente desonesta. Já agora, vale a pena lembrar a JMF que a distinção entre tutsis e hutus não passa pela religião e que, entre os 800.000 ruandeses mortos, não se encontravam apenas tutsis mas também hutus moderados, demonstrando o papel relevante da motivação política neste genocídio. Só mesmo um olhar primordialista como o de Huntington ou de JMF passa ao lado desta realidade. Na verdade (e voltando ao caso do Sudão), JMF omite propositadamente os esforços que têm vindo a ser feitos pela ONU, remetendo-os para a dimensão humanitária e apresentando o caso como mais um exemplo de incapacidade, pura e simples. É falso. Apesar da capitalização que o governo de Cartum tem sabido fazer das negociações que decorrem no momento em Naivasha (Quénia) para pôr termo ao conflito com os rebeldes do sul - fazendo depender a sua continuidade no processo de paz da liberdade para agir em Darfur - o Conselho de Segurança, seguindo uma recomendação de Kofi Annan, aprovou o envio de uma missão de reconhecimento e de preparação para a operação de paz que será autorizada na sequência da assinatura dos acordos agora em negociação (Resolução 1547, de 11 de Junho de 2004). É um passo fundamental para controlar os passos do governo mais de perto, exigir o livre acesso à ajuda humanitária e pressionar para uma resolução pacífica do conflito. Mas, aqui como sempre, é a vontade política dos membros do Conselho de Segurança que é determinante e não um suposto activismo institucional da ONU. Que os EUA, visivelmente movidos pelos seus objectivos estratégicos de combate ao terrorismo islâmico e de procura de fontes energéticas alternativas (o petróleo do sul do Sudão), e a União Europeia se mostrem agora disponíveis para uma condenação firme e com consequências políticas é, de facto, a diferença clara relativamente à passividade registada no caso do Ruanda, há precisamente dez anos atrás, e em muitas outras catástrofes que têm pautado o mais de meio século de existência das Nações Unidas. Professores de Relações Internacionais, Universidade de Coimbra