A senhora que gostava de "caminhos que não são tradicionais"
"Um país libertoUma vida limpaUm tempo justo"Sophia de Mello Breyner AndresenAinda há oito dias, Maria de Lourdes Pintasilgo disse presente e subiu a escadaria do Palácio de Belém para dar notícia das suas reflexões sobre o estado do país e da política a Jorge Sampaio, que a quisera ouvir assim num estatuto de sábio, de quem cujas ideias vale a pena ter em conta. À saída vinha segura na sua boa disposição, ciente de que não fora uma hora em vão e sabedora de que as suas reflexões nunca eram vulgares, nem o seu espírito domesticável. E com um sorriso nos lábios e os olhos pequeninos, prescrutantes, mostrou-se tranquila quanto ao futuro e, desassombrada, atirou: "Não me repugna caminhos que não são os tradicionais."Ontem de madrugada faleceu, sem aviso prévio, de paragem cardíaca súbita, que a surpreendeu, às duas e trinta da manhã, pondo fim a uma vida de luta e de causas por "Um país liberto/Uma vida limpa/Um tempo justo", como rezam as palavras de Sophia de Mello Breyner, que Maria de Lourdes Pintasilgo citou no texto de homenagem à poeta, publicado no suplemento MIL FOLHAS de ontem.Nascida a 18 de Janeiro de 1930, em Abrantes, Maria de Lourdes Ruivo da Silva Pintasilgo, dedicou a sua vida à busca da justiça, uma busca que se processava numa dimensão internacional, para além das apertadas e abafantes fronteiras de Portugal, mas que nunca se desligou do país, onde foi sempre uma pioneira: desde primeira engenheira química-industrial, a primeira procuradora à Câmara Corporativa, a primeira primeira-ministra."Honoris causa" pelos direitos das mulheresO plano internacional em que se processava era o da luta contra a pobreza, pelo desenvolvimento sustentável, do aprofundamento da igualdade e da dignidade humana. Daí seu empenho total na luta pelos direitos das mulheres, pela paridade entre homens e mulheres, na procura de soluções para reorganizar o espaço da vida privada que permitam essa mesma igualdade.A preocupação de Pintasilgo com a causa das mulheres vinha de longe, desde que entre 1970 e 1974 presidiu à Comissão Inter-Ministerial sobre a Política Social relativa à Mulher, vulgo, à época, Comissão da Condição Feminina. Em 1990, recebe, na Universidade Católica de Louvain-la-Neuve, um doutoramento "honoris causa" pelas suas "qualidades humanas e pelo seu empenho em defesa dos direitos das mulheres". Não se coibiu de criticar, por considerá-las envergonhadas, as propostas de quotas mínimas para mulheres na política. E foi sempre com preocupação, espírito crítico, mas sem perder o sentido de humor, que acompanhou a situação da mulher em Portugal. Como quando contou, em 1999, a Teresa Maia Costa, do "DNA", que num banquete oferecido pelo Presidente Jorge Sampaio ao Presidente Xanana Gusmão, das 72 personalidades que tinham ocupado cargos em órgãos do Estado só três eram mulheres, ela, Isabel Castro e Luísa Teotónio Pereira.A sua busca de justiça, natural para quem faz da doutrina social da Igreja um modo de vida, levou-a a ter uma carreira politica internacional, que era praticamente ignorada em Portugal. Integrou o Conselho da Ciência e Tecnologia ao Serviço do desenvolvimento da ONU (1989-1991), foi membro da Universidade da ONU, pertenceu ao Comité de Sábios da Europa, presidiu à Presidiu à Comissão Independente para a População e a Qualidade de Vida (1992-1999), foi co-presidente da Comissão Mundial da Globalização."Fazer o bem é falar com Deus"No fundo, viveu em vários palcos a sua enorme capacidade de entrega e dedicação aos outros que vivia de uma forma assumidamente crente. Ela mesma dizia, na entrevista a Teresa Maia Costa, usando uma frase que atribuía a Xanana Gusmão que "fazer o bem é falar com Deus". Celibatária por opção e convicção, Maria de Lourdes Pintasilgo aprofundou a sua relação com o catolicismo na juventude. Filha de um industrial e comerciante de lanifícios, Jaime Pintasilgo, e de Amélia Ruivo da Silva, que descendia de uma família laica e republicana, em casa, com o seu irmão mais novo, a educação não mergulhou muito nos mistérios da fé. E é em Lisboa, para onde veio viver aos 7 anos, no Liceu Filipa de Lencastre, onde foi aluna de quadro de honra e chefe de falange da Mocidade Portuguesa, segundo a biografia que Joaquim Vieira publicou no "Expresso", que Maria de Lourdes Pintasilgo adere Acção Católica, na Juventude Estudantil Católica e, depois, na Juventude Universitária Católica Feminina, que dirige.A sua indomável capacidade de procurar ir mais longe, de acompanhar os ventos da história, de viver o seu tempo, leva-a, com a sua grande amiga Teresa Santa Clara Gomes, a trazer para Portugal o Movimento Internacional Graal. De início, em 1958, o Patriarcado de Lisboa, liderado pelo Cardeal Cerejeira, opõe-se. Mas em 1960, o Graal passa a ser uma realidade em Portugal e as suas reuniões são sessões onde a ditadura salazarista é criticada. Foi a própria Pintasilgo que relatou, anos depois, que a PIDE ia assistir às sessões e que ela despistava os agentes frisando que dissera as mesmas coisas na Câmara Corporativa, que integrava.100 dias de Governo para as pessoasLicenciada aos 23 anos, em Engenharia Químico-Industrial, pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa - curso em que se inscreveu, apesar de gostar de Filosofia e ter já como referência Simone Veil -, ingressou naquele curso para contrariar a ideia feita e a realidade de que este era só para homens. Como engenheira será, entre 1954 e 1960 directora de projectos da CUF.Mas cedo Maria de Lourdes Pintasilgo se iniciou na actividade política. É nomeada para a Câmara Corporativa em 1969. É, aliás, a primeira mulher a sentar-se neste órgão do Estado Novo. Começa também então a sua actividade internacional. Entre 1971 e 1972 integrou a delegação de Portugal à Assembleia-Geral da ONU. Será depois embaixadora de Portugal na Unesco entre 1976 e 1979, passando a membro do Conselho Executivo. Órgão internacional a que não regressará, depois de deixar de ser primeira-ministra, porque, como lhe comunicou Freitas do Amaral, o Governo eleito da AD não confiava politicamente nela, conta Joaquim Vieira, na biografia do "Expresso".Imediatamente após o 25 de Abril, integra o I Governo Provisório, como secretária de Estado dos Assuntos Sociais, é depois Ministra dos Assuntos Sociais II e III Governo Provisórios. Em 1979, Pintasilgo é chamada, pelo Presidente da República, António Ramalho Eanes, a formar Governo, tornando-se na primeira primeira-ministra de Portugal e a única até hoje.Ao longo de 100 dias que tem marcados para governar, até que se realizem as eleições, inova, organizando o executivo em três áreas: económica, social e cultural. O seu programa é ambicioso e classificado por Freitas do Amaral, então um dos líderes da recém-formada AD, como um "rol assombroso de fantasia delirante e de megalomania governativa". A verdade é que deixa obra a pensar nas pessoas e na tentativa de aclamar a sua sede de justiça: termina a instalação da Segurança Social obrigatória, regulamenta a lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde, introduz reformas no ensino, na cultura e no trabalho, que seriam suspensas pela AD.Em 1985, volta à ribalta política como candidata à Presidência da República recolhendo apoios da esquerda não PCP. Na segunda volta apela ao voto em Mário Soares. Dois anos depois é eleita como independente pelo PS ao Parlamento Europeu, onde cumpriu um mandato. Mulher sedenta de justiça e dignidade humana, Maria de Lourdes Pintasilgo foi uma mulher clara e assumidamente de esquerda, de uma esquerda não formatada em partidos e ideologias estanques, de uma esquerda desalinhada, de uma esquerda plural. Daí ter estado, nos últimos anos de vida, próxima do PS e apoiado até expressamente campanhas eleitorais socialistas - nomeadamente tomou partido nas páginas do PÚBLICO pela candidatura de João Soares em Lisboa - , mas ter também sido, em alguns momentos, uma espécie de madrinha do Bloco de Esquerda.