A segunda guerra do Iraque
Quase tudo no Iraque depende da segurança, da vinda da ONU à realização das eleições. A situação é péssima. A formação da polícia e do exército estão em risco. Em certas zonas do país a situação é alarmante.A resolução da ONU sobre o Iraque, de 8 de Junho, e a transferência de poderes para o Governo interino, a 28, abriram uma nova fase. Bush fez importantes concessões na ONU para reconquistar os aliados e conseguir uma legitimação internacional, devolvendo a Bagdad uma soberania limitada e abrindo um processo eleitoral.1. Comecemos pelos Estados Unidos. O efeito mais importante destes 15 meses de ocupação é a "erosão da Doutrina Bush", constatava há dias o "New York Times". O unilateralismo está em baixa: "Precisamos dos aliados. Tornamo-nos mais vulneráveis e expostos quando não os temos", diz um analista.O princípio da guerra preventiva ("preemptive") - não apenas contra uma ameaça iminente mas também contra uma ameaça virtual - está gravemente ferido. Não foi abandonado mas tornou-se menos credível. Depois do vespeiro iraquiano é de prever nova aventura contra qualquer outro membro do "eixo do mal"? Para a maioria dos analistas, a guerra prejudicou também a luta antiterrorista e fez do Iraque um abcesso de fixação. A Al-Qaeda, depois de derrotada no Afeganistão, está de regresso e ataca na Arábia Saudita, cuja queda é um dos seus objectivos estratégicos.A promoção da democracia foi revista em baixa. Washington deu a entender que se resigna a um regime islamizante no Iraque "se essa for a escolha do povo". A iniciativa "Grande Médio Oriente" reduziu as ambições, desistindo de impor a mudança dos regimes. Outro artigo de fé, a resolução do conflito israelo-palestiniano por efeito da democratização iraquiana, foi ridicularizado. Enfim, perdendo credibilidade, política e moral, os EUA viram diminuir a sua capacidade de arbitrar os conflitos da região, escreve o jornal israelita "Ha'aretz".2. As mudanças no Iraque e em Washington colocam a Europa perante um dilema. Assumir maiores responsabilidades ou deixar o assunto aos americanos? Para lá das opiniões sobre a aventura iraquiana, uma "guerra passada" e sobre a qual os factos já se pronunciaram eloquentemente, há uma "guerra nova", a da estabilização do Iraque, vital para a Europa, que quer evitar um "pesadelo estratégico" às suas portas. Isto passa pela formação acelerada do exército iraquiano, em que a NATO seria central.A França aprovou a resolução da ONU, impondo alterações fundamentais à proposta anglo-americana, de modo a acentuar a soberania do Iraque e colocar as suas forças de segurança sob exclusivo comando de Bagdad. Mas resiste agora na questão da NATO, "sem poder bloquear uma engrenagem susceptível de conduzir, mais tarde ou mais cedo, a uma presença da organização atlântica em Bagdad", escreveu em editorial "Le Monde", pouco suspeito de simpatia por Bush. Chirac tem uma guerra de atraso. 3. O plano americano para a nova fase assenta em dois pilares. No campo político, Washington passa a exercer um controlo "discreto" do poder, através do embaixador John Negroponte e dos conselheiros nos principais ministérios. Discreto, porque a opinião pública iraquiana não deve encarar o Governo interino como uma marioneta de Washington.No plano militar, os americanos visam reduzir a sua intervenção. Ainda estamos na "fase um", em que os GI são os responsáveis directos pela segurança. Em Dezembro, passa-se à "fase dois", de "controlo local", em que a polícia iraquiana garantirá a segurança e os americanos só actuarão como "força de reacção rápida". Se as eleições correrem bem, e houver exército iraquiano, prevê-se para os primeiros meses de 2005 a passagem à "fase três", de "controlo regional", em que a segurança caberá por inteiro aos iraquianos e a Força Multinacional só intervirá nas cidades "em última instância". Por fim, e ainda sem data, segue-se a "fase quatro", de "supervisão estratégica", com os americanos concentrados em duas ou três grandes bases, em regiões desabitadas. O EUA ficarão provavelmente mais cinco anos, diz o chefe do Estado-maior Interarmas, general Richard Myers. O subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz, quer prolongar a presença militar, para reforçar a tutela regional. É uma ilusão: o supremo líder xiita, ayatollah Sistani, já avisou que não o tolerará.4. A realidade é menos bonita que os planos.A segurança é a grande prioridade do Governo de Iyad Allawi e a condição das eleições de Janeiro de 2005. Basta dizer duas coisas. A ONU deverá desempenhar um papel decisivo no processo eleitoral mas não envia a correspondente missão enquanto a violência não baixar. Segundo: para lá da guerrilha e do terrorismo, o Iraque do pós-guerra é um mosaico de identidades religiosas, étnicas e tribais que encerra um risco de guerra civil. Os curdos têm repetido os avisos.O que as notícias indicam é uma "lentidão alarmante" na formação das forças de segurança iraquianas, pedra angular da estabilização e do processo político. Dizem fontes americanas à AFP: dos 87 mil polícias existentes, apenas 5000 receberam uma formação completa e 57 mil nenhum treino; dos 35 mil militares operacionais previstos para Janeiro de 2005, apenas 7115 estão ao serviço e 2600 em formação. E as deserções são maciças: 80 por cento em algumas unidades.Os EUA dissolveram o exército, por cegueira ideológica e para enfraquecer duradouramente o Iraque, tornando imprescindível a sua presença. Hoje, colhem os frutos.5. A situação em certas áreas é assustadora. Um inquérito de Rémy Ourdan, correspondente do "Monde", retrata o caso emblemático: Falluja, cidade de 500 mil habitantes a 50 quilómetros de Bagdad. É "o emirado de Falluja", a "zona libertada" onde "os americanos não põem os pés". Os americanos atacaram-na em Abril, caindo numa ratoeira: apenas um massacre maciço, com meios aéreos, lhes daria a "vitória". Algumas dezenas de mortes mobilizaram xiitas e sunitas contra o ocupante. Os "marines" retiraram-se.Hoje, a cidade está na mão dos "emires", comandantes rebeldes, iraquianos e estrangeiros, muitos deles ligados à Al-Qaeda. Dois imãs fundamentalistas governam a cidade, onde se aplica a mais rigorosa "sharia" (lei islâmica). Já nada tem a ver com os partidários de Saddam.Ao retirar, os americanos entregaram o comando militar da cidade a um antigo general de Saddam, que se passou para os rebeldes. Depois foi nomeado outro general, Mohammed Latif, que se limita a pactuar com os "mujahedin". Os rebeldes controlam assim uma cidade às portas da capital, onde são acolhidos os combatentes estrangeiros da "jihad", onde há campos de treino e depósitos de armas, onde reina a paranóia da caça ao espião e se multiplicam os assassínios, incentivados pelos imãs. Diz um rebelde ao jornalista: "Falluja é um revelador. Se sobrevivemos aos americanos, todo o Iraque os pode vencer. Se sobrevivermos a Allawi, todo o Iraque pode estar amanhã nas nossas mãos."