O belo foi sempre Brando
Já era quase um fantasma, mas só ontem foi anunciado o óbito: Marlon Brando morreu quinta-feira à noite num hospital privado de Los Angeles, aos 80 anos. Imperscrutável até ao fim: o motivo da morte não foi divulgado. Brando tomou a Broadway e Hollywood de assalto nos anos 50 para continuar a assombrar-nos, mesmo quando a sexualidade visceral e o actor do Método deram lugar a uma obesidade massiva e à auto-paródia, entre lenda viva e curiosidade "freak". Mas o belo foi sempre Brando - o da icónica t-shirt branca colada ao corpo, suada e rasgada, em "Um Eléctrico Chamado Desejo". Esta imagem não existe, não existia há muito, mas é sempre a ela que voltamos quando voltamos a Brando. Começava aí o mito de um actor sem precedente, um "angry young man" de uma interioridade crispada, quase relutante, e uma imponência física indomável, bruta, como se ambas entrassem em conflito. Elia Kazan, que o dirigiu nas duas versões de "Um Eléctrico...", em teatro e cinema, disse na altura: "É pura e simplesmente o melhor actor do mundo". Sem mais nada, porque não era preciso - isso via-se. Brando deu no cinema, mas podia ter dado na delinquência. Nascido em Omaha, Nebraska, no Midwest (leia-se: província), a 3 de Abril de 1924, na sua autobiografia "Canções Que a Minha Mãe Me Ensinou", de 1994, descreve uma infância e juventude desfalcadas, entre dois pais alcoólicos, um "canalha patenteado" e uma actriz frustrada, uma educação incompleta e a expulsão da Academia Militar do Minnesota para onde o pai o enviara - por comportamento insubordinado. Em 1943 junta-se às duas irmãs mais velhas em Nova Iorque, onde passa os primeiros anos à deriva, entre aulas de representação e benefícios da Segurança Social. O Actor's Studio e a sua mentora, Stella Adler, moldam um actor do "Método", essa nova técnica de vivência das personagens, tão rodeada de realismo quanto abismal. Brando traz de lá um sopro de voz único, esse fraseado de uma doçura feminina e contrária ao seu corpo ostensivamente masculino. O efeito é desconcertante, não se consegue discernir entre representação e realidade: quando se estreia na Broadway, em 1944, com "I Remember Mama", o que impressiona é a autenticidade com que se cola à personagem, como se não estivesse a representar, como se o actor programado para o papel tivesse sido substituído no último minuto por alguém "que não soubesse fingir, que nunca tinha aprendido a fazê-lo", como se testemunha na biografia escrita por Peter Manso. A presença em palco era curta e a primeira cena consistia em quase nada, um mero "Boa noite, mamã. Boa noite, papá", e depois saía - sob aplauso estrondoso e o espanto dos restantes actores. Em 1947, aos 23 anos, é escolhido para interpretar Stanley Kowalski na peça de Tennessee Williams, "Um Eléctrico Chamado Desejo". Num artigo escrito para a revista "New Yorker" em 1956 (publicado em "Os Cães Ladram", ed. Relógio d'Água), Truman Capote conta como, a caminho de um ensaio, e sem saber quem Brando era, o encontrou a dormir no palco e, "devido ao seu físico entroncado de atleta", "à t-shirt branca e às calças de ganga", o confundiu com um ajudante de palco. "Era como se a cabeça de um estranho tivesse sido encaixada no corpo bronzeado, como em certas montagens fotográficas. Porque ao rosto faltava em absoluto a rudeza e imponência do físico; (...) pele lisa, uma testa alta e larga, olhos apartados, um nariz aquilino, lábios cheios com uma expressão descontraída e sensual, sem nada que sugerisse esse Kowalski tão falha de poesia que Williams criara." Brando estreia-se no cinema com "The Men", em 1950, no papel de um veterano de guerra paraplégico e, no ano seguinte, recria Kowalski na versão cinematográfica de "Um Eléctrico..." que, tal como a peça, firma a sua reputação de "star". Seguem-se dois papéis, em 1954, que fixam o mito: "O Selvagem", grito de revolta de uma juventude inconformista e "Há Lodo no Cais", tido como uma das suas melhores prestações, misto de força bruta, rudeza, e vulnerabilidade, numa variação de Caim e Abel. Hollywood entrega-lhe o Óscar.Percurso erráticoQuando Capote o encontra em 1956, durante as rodagens do exótico "Sayonara", no Japão, o jovem Brando já se começava a dissipar e o peso do mito a ficar mais pesado, estranha mistura de auto-desmisitficação e egocentrismo. O escritor nota-lhe a bulimia, numa fase em que os quilos se começavam a notar, o discurso monologante, a insolência. E cita-o: "Eu já dei o que tinha a dar. Vou desistir." Os anos 60 correspondem a um percurso errático, entre tiros no escuro e "miscasts". Brando reforça a reputação de difícil, experimenta a realização com o anti-western "Cinco Anos Depois" (1961) e volta a surgir, em "technicolor" e besuntado de maquilhagem, em "Revolta na Bounty" (1962), superprodução que resulta num desastre de bilheteira e, claro, toda a gente culpa o actor. Brando, o belo, ganha peso e assume-o. Para alguns, foi como se, sem o corpo apolíneo, ele se tivesse aplicado mais a fundo no Método. Em 1969, a revista "Film Comment" titula "Is Brando necessary?".Coppola vai buscá-lo para "O Padrinho" (1972), quando ele é "persona non grata". O actor enche as bochechas de Kleenex, escova o cabelo (grisalho) para trás e fala naquela voz quase murmurada. É Marlon depois de Brando, a mesma imponência, novo Óscar, com o activismo político do actor a arreganhar os dentes, enviando uma índia americana para recolher o prémio. O Brando de "O Padrinho" nada tem a ver com o do passado, mas Bertolucci tenta jogar com o poder sexual do actor, cínico, dividido, exposto, em "O Último Tango em Paris". Coppola vai buscá-lo de novo para "Apocalypse Now" (1979), em que se ouve a voz muito antes de o vermos. Brando, enfim, quase um fantasma: só surge no segmento final, mas a sua presença domina, é para ela que corre, propondo um abismo entre Brando "himself" e a personagem. Sempre desdenhado do fascínio devotado aos actores - "Se um estúdio me oferecesse o mesmo dinheiro para limpar o chão, eu limpava o chão" - não se inibiu de prestar-se à auto-paródia, sabotando filmes e espectadores (basta vê-lo em "Don Juan de Marco"). Os anos 90 foram difíceis: o filho foi acusado de matar o namorada da irmã, que, mais tarde, se suicidou. Brando bateu-se pela defesa do filho, envolvendo-se em disputas legais e problemas financeiros. Refugiado na sua ilha no Pacífico Sul, recebeu Larry King e a CNN rodeado de cães e atestou a sua última "next big thing", um biscoito-fruto gerado por uma planta que ainda servia para fertilizar terras ou ser transformada num combustível não-poluente. Um fantasma, meu Deus, um fantasma. E a confissão: "Quando me deito nu na praia, o que faço por vezes, com o vento e as estrelas sobre mim, e contemplo essa noite profunda e indescritível, faltam-me palavras para descrevê-lo. E aí, penso, Deus, não tenho qualquer importância - o que quer que eu ou alguém faça não é mais importante do que os grãos de areia em que estou deitado, ou o côco que me serve de almofada."