Um mundo de espelhos

Em "Shrek 2" repete-se a receita. Se possível (o filme mostra que sim) de maneira mais ampla e mais extensa. O universo referencial agora é "totalizante", já não é apenas a tradição dos contos infantis que é chamada a marcar presença mas todo um arsenal de referências "culturais", que vão da música ao cinema. Quase todos os efeitos cómicos de "Shrek 2", quase tudo o que é fundamental na sua lógica de construção de "gags", assenta num jogo com o conhecimento prévio do espectador, e voltam a alusão e a citação como mecanismos essenciais. De alguma forma, "Shrek 2" constrói o seu espectáculo a partir de uma inspiração colhida na própria tradição do espectáculo. Um óptimo exemplo, que dentro do filme soa quase a uma "confissão" do seu modo de funcionamento, é a "colagem" do reino de "Far Far Away" ("Bué Bué de Longe", na tradução portuguesa), onde se passa a maior parte da acção do filme, a uma reprodução "fabulosa" de Los Angeles enquanto cidade do "show biz" e de... Hollywood: e lá se vislumbra, nas colinas ao longe, o letreiro que substitui a palavra "Hollywood" por "Far Far Away".

Em parte, é também por isso que é mais difícil ao espectador recordar-se da "narrativa" de "Shrek 2" do que de episódios, fragmentos, "gags", figuras. É como se o filme fosse um caldeirão onde todas estas diversas referências fossem misturadas e servidas com outro arranjo. Por exemplo, uma cena de salvamento "in extremis" que põe Pinóquio a mimar Tom Cruise na "Missão Impossível" e onde o seu nariz cresce à força de mentiras sobre o facto de usar... roupa interior feminina. Até a banda sonora investe nesta linha, de modo mais evidente do que no primeiro filme: um filme de animação dirigido ao grande público que tem, por exemplo, um bar (enfim, uma estalagem ou coisa parecida...) onde há um pianista que se entretém a cantar canções de Tom Waits ou de Nick Cave não é certamente coisa muito comum.

Mas outro ponto onde "Shrek 2" revela uma sagacidade e uma imaginação muito próximas do absoluto brilhantismo é na maneira como joga com as personalidades e com as "imagens" daqueles que, no filme, ficam sem se ver: os actores que dão as vozes às personagens. Se o Burro de Eddie Murphy e a Princesa Fiona de Cameron Diaz já no primeiro filme trabalhavam esse aspecto, "Shrek 2" leva-o mais longe. Julie Andrews no "papel" da Rainha convoca óbvias memórias do passado cinematográfico da actriz inglesa e John Cleese a oferecer a voz à personagem do rei estabelece um "link" bastante directo com a tradição britânica e "montypythoniana", por excelência referencial e "desconstrutora". Algumas personagens, no entanto, parecem inteiramente construídas em torno do universo, da "imagem", transportada pelas vozes que as animam. A mais notável de todas será seguramente a daquela mistura entre Gato das Botas e Zorro, que condensa os recortes de personagens "clássicas" num esteréotipo de "galã latino" semi-poltrão: a voz (e o sotaque manhoso) dessa personagem são de... Antonio Banderas, e este gato espadachim e gabarola praticamente desaloja o Burro do estatuto de "principal coadjuvante" das aventuras de Shrek e Fiona. Como que a confirmar que tudo em "Shrek 2" é feito de brincadeira auto-consciente, a própria usurpação desse estatuto acaba por estar na fonte de não poucos diálogos e piadas.

Sugerir correcção
Comentar