Jorge Custódio
O ponto de encontro foi a cafetaria do Museu da Fundação Gulbenkian, logo à hora da sua abertura. O desafio lançado a Jorge Custódio fora feito, desta vez, por um amigo aconselhamento. Não me lembrava bem das ocasiões que, enquadradas por projectos que a ambos animavam, nos tinham aproximado em tempos que já lá vão. A memória brinca por vezes a estes jogos de quase penumbra, para depois, assim que o reencontro se dá, disparar afoitamente o botão interior que acciona vários projectores sobre quem temos diante de nós, iluminando a pessoa com um halo de proximidade inesperada. É um homem aparentemente tímido, de voz baixa, discreto no saber acumulado ao longo de muitos anos, generoso no fornecimento de todas as pistas que considera essenciais para que outros melhor compreendam o que reputa serem alguns dos sinais reveladores da evolução colectiva dos homens. Veste a camisola do "faroleiro" atento ao património cultural e ao movimento das "ondas" e das "correntes" que o desenvolvimento industrial foi produzindo na história da humanidade e ao significado dos vestígios que dele ainda podemos encontrar à nossa volta - que de nós falam com grande eloquência, embora, para seu descontentamento, pouca atenção lhes tenha sido dada. Diz ser "vários" em um. Sigam-no comigo e logo verão como nos dá chaves para entrarmos (e vermos!), mais e melhor, no que nos cerca e, desse modo, podermos, mais e melhor, entender o que está em causa, mesmo ao virar da esquina dos nossos passos. Dirige neste momento o Convento de Cristo, em Tomar, cuja considerável extensão em comprimento e em área de quilómetros e metros quadrados palmilha com sofreguidão, sempre na expectativa de descobrir novos dados, novas surpresas. MJS - Jorge Custódio, diga-me quem é.JC - Essa pergunta soa sempre a estranha, ainda mais nos dias de hoje, em que, numa cidade como a nossa e num mundo como este, a grande dificuldade em responder é ampliada pela complexidade dos fenómenos que nos assistem. Lembro-me do bem que me fez ver, em jovem, um quadro de Gauguin, pintado no Haiti, onde está tacitamente perguntado - quem somos, donde vimos e para onde vamos. Confrontado com uma sociedade completamente diferente do mundo ocidental onde vivia, com uma cultura e valores outros, o pintor, face a esse embate, exprimiu na tela uma forma nova de se questionar sobre quem era. É um tema milenar, impresso nas nossas origens civilizacionais e culturais. A sua questão não deixa de ser hoje como que uma pergunta taxativa, que se nos coloca sobretudo quando pensamos que vivemos num mundo altamente globalizado e complexo. Na maior parte dos casos pouco entendemos dessa complexidade. Procuro fazer um esforço para ler e entender os sinais do mundo e dos tempos. Para compreender alguma coisa do meu percurso, a questão da heteronímia, tão ao gosto de Pessoa, é talvez a que melhor pode ajudar. Quando me chamam - senhor engenheiro - tenho que esclarecer que não sou engenheiro, se preferem o "senhor arqueólogo", digo logo que não sou arqueólogo, nem museólogo.MJS - Interessa-me ouvi-lo falar mais, para tentar ver claro, sobre duas vertentes da sua resposta - a da complexidade do mundo actual (a conjuntura onde o "quem é" se define) e a da sua assumida heteronímia que, embora assente numa licenciatura em História, ultrapassa-a em muito.JC - Vamos todos evoluindo com as mutações do que nos rodeia e eu confronto-me, permanentemente, com a necessidade de acompanhar e de interpretar as transformações que vão surgindo. Quando era jovem, o mundo não estava ainda neste caminho; quando cresci, o mundo começou a ser mais complexo e agora, nesta idade, sinto que o mundo está com sintomas de doença, alguns deles de grande gravidade. Esses sintomas de doença são, para mim, o ambiente, os países pobres (que têm também muito a ver com o ambiente e o modo como se gerem os recursos), e uma certa impunidade ética que hoje nos assiste a vida - basta olhar à volta para percebermos que os nossos princípios não são os que regem o mundo. A minha necessidade constante de averiguar, de pesquisar, não decorre de querer ter fechados numa redoma os valores culturais, científicos, técnicos, e até éticos, que tenho como fundamentais, mas antes do desejo de os ver projectados dinamicamente, de os ver concorrer na realidade do tempo e do mundo. Pede-me que lhe explique o "quantos sou eu". Primeiro aparece o professor, aquela pessoa que quer ser um pedagogo, que quer ensinar, partilhar com outros as achegas, as conclusões e a vivência de um conhecimento e de uma prática - faço isso na Universidade de Évora (não sou professor universitário, sou docente convidado), em torno de assuntos ligados ao património cultural e, sobretudo, à conservação e restauro e à museologia. Logo a seguir, vem o arqueólogo, não apenas o arqueólogo de gabinete, como muitos pensam que sou. Fiz escavações, faço intervenções arqueológicas, no sentido clássico e no sentido moderno do termo. O ser arqueólogo industrial não quer dizer que se está na postura de quem observa apenas aquilo que está à cota positiva. Não basta isso, é preciso entender os sinais da dimensão que a velocidade avassaladora do ritmo de transformação tecnológica, operada nos últimos 200 anos nas sociedades ocidentais, em Portugal inclusive, operou no tecido industrial. Um dos lados mais interessantes da minha pesquisa neste campo foi tentar (e conseguir!) demonstrar que uma coisa é o processo industrial português, outra coisa é a imagem que temos desse mesmo processo. O que aconteceu entre nós é que a imagem se sobrepôs à realidade. E aquele conceito de um país agrário, rural, prevaleceu. Fiz algumas viagens à procura de bens arqueológicos industriais no país e cheguei à conclusão de que Portugal cumpriu as etapas todas do processo da industrialização europeia. A escala é que era diferente. Mesmo durante o Estado Novo, em que a tal imagem do país rural era a mais transmitida, chegámos a um momento em que a própria indústria se sobrepôs à agricultura, sob o ponto de vista de sector populacional mais activo, sobretudo no período que se seguiu ao fim da II Grande Guerra. Deveu-se isso ao mérito de grandes homens que procuraram não só fazer a electrificação do país, como também planear o desenvolvimento programado da indústria portuguesa. Basta lembrar o ministro Ferreira Dias e a sua "Linha de Rumo", que só recentemente, com a publicação do segundo volume, deixado em manuscrito, se conseguiu perceber como, apesar de ser membro do Governo de Salazar, era crítico de certas opções do Estado e da política para o sector defendida pelo Presidente do Conselho. Estávamos em meados dos anos 40. O que aconteceu depois foi que um pequeno grupo de empresas se assenhoreou de todo esse património industrial e passou a dominar a economia nacional, não havendo, nem com o fenómeno da guerra colonial, uma apropriação económica correcta em termos de desenvolvimento. Apesar disso, quando o 25 de Abril aconteceu ainda havia no país um contexto onde era visível um certo estádio de desenvolvimento económico e industrial. Mas, quer com a guerra colonial, quer com todos os movimentos que o 25 de Abril desencadeou, foram reforçadas as fragilidades do tecido empresarial dos nossos capitães da indústria. E nunca mais se voltou a definir um programa de desenvolvimento industrial para o país.MJS - Apesar de ainda não termos chegado ao outro heterónimo - o museólogo -, parece-me de interesse explicitar melhor alguns conceitos que apaixonam o arqueólogo que há em si e que constituem grande parte da matéria dos seus estudos, das suas aulas e pesquisas, mas de que o público em geral pouco conhecimento tem: os conceitos de "património industrial" e de "arqueologia industrial". JC - Em Portugal, esses conceitos só começaram a ganhar estatuto de interesse cultural para a investigação histórica a partir dos anos 80, mas foram os ingleses, particularmente a seguir ao fim da II Grande Guerra, que deram um sentido novo ao património industrial - um botão, uma pá, uma faca, uma máquina, um arquivo, uma fábrica, uma mina deixaram de ser objectos ditos comuns para ganharem o sentido de património. A esse reconhecimento novo e ao estudo das origens e da função desses objectos chamavam-lhe normalmente "industrial archaeology" - o que deu origem, noutros países, a alguma confusão na utilização dos dois termos, o de património industrial e o de arqueologia industrial. Quando me disponho a salvaguardar, a conservar, a recuperar esses vestígios reais, estou a tratar de património, não estou a tratar de arqueologia. A arqueologia consiste num procedimento científico de análise dos vestígios, de modo a serem traduzidos numa interpretação nova de uma unidade fabril, de um espaço urbano, de uma mina... A área do património é um campo multidisciplinar, para onde concorrem variadíssimos contributos e a que são inerentes as questões da salvaguarda, da conservação, do restauro e da valorização.MJS - É aí que entramos no terceiro patamar dos heterónimos - o museólogo?JC - Antes do museólogo está o investigador do património, ou, se quiser, o patrimonialista, uma das grandes áreas da minha vida. Estive ligado à fundação das primeiras associações de defesa do património, com Rui Rasquilho, Manuel Gândara, Pedro Canavarro, Bento Pinto da França, entre outros. Fomos convidados por Vasco Pulido Valente, enquanto secretário de Estado da Cultura, em 1980/1, para fazermos a campanha nacional para a defesa do património. Com excepção do período da República, era a primeira vez que em Portugal uma nova geração, e em termos novos, vinha a público falar em património cultural. Durante o século XIX falava-se muito em monumentos históricos e monumentos nacionais. Nos finais desse século começou a desenvolver-se uma outra estratégia, animada por pintores e por escultores que trabalhavam em torno de Sousa Viterbo, Ramalho Ortigão e de Joaquim de Vasconcellos e que referiam património artístico. Foi durante a República que a filosofia artístico-arqueológica (obra de José de Figueiredo, José Pessanha, António Augusto Gonçalves, Ventura Terra, Raul Proença) conferiu ao património um grau de valorização cultural que nunca até então lhe tinha sido atribuído. Veio Salazar e o Estado Novo e volta a repor na linha da frente os monumentos nacionais, de que a existência da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais é uma consequência.MJS - Tive sempre dificuldade em perceber o porquê de uma certa duplicação de funções entre essa direcção-geral e o Ippar (Instituto Português do Património Arquitectónico).JC - Essa duplicação reflecte a bicefalia que preside entre a cultura e educação, por um lado, e as obras públicas, por outro. Mas não é de hoje, inicia-se em 1919, quando foi criada a Administração Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, de que a direcção-geral do mesmo nome é consequência. Mais tarde, a bicefalia prossegue, na Academia Nacional de Belas-Artes, através do trabalho de pensadores e teóricos, como Reynaldo dos Santos, havendo uma Direcção-Geral de Educação Nacional que tratava dos assuntos ligados ao património. E só nos anos 80 é que então é criado, no âmbito da Cultura, o IPPC (Instituto Português do Património Cultural), hoje Ippar. Quando começámos a trabalhar na tal comissão criada por Pulido Valente, foi desesperante vermos o "modus vivendi" do país em relação ao património cultural, comparado com o que se passava lá fora, onde tinha sido dado, desde a Carta de Veneza, um salto qualitativo muito grande. Em Portugal, pelo contrário, tinha-se andado para trás.MJS - Data de quando a Carta de Veneza?JC - De 1964. A Carta foi um instrumento que desencadeou, a nível europeu, toda a mudança relativa ao estudo, à salvaguarda, à valorização, conservação e restauro do património cultural, enquanto Portugal continuava a dispor e a trabalhar segundo uma lógica ainda muito arreigada ao modelo técnico, administrativo e operacional, de conservação e restauro. De tal modo que deparámos com muitos edifícios, todos padronizados pelo mesmo item. Ou seja, eram todos vistos, apesar da sua grande diversidade, segundo a mesma filosofia, os mesmos parâmetros, o mesmo padrão. Muitas das críticas dirigidas nessa altura à Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais prenderam-se com a verificação desse "modus operandi", que estava anquilosado e não cumpria os desígnios de uma mudança qualitativa que já há anos se operava na Europa. O que a tal comissão fez foi gizar a mudança, ou seja, fomos uma espécie de missionários que, por todo o território português, íamos alertando as pessoas para os valores patrimoniais mais diversos. O lema era - atenção a estes valores, "isto" que aqui está é um valor que deve ser estudado, conservado e valorizado! Fizemos imensas reuniões nos governos civis, nas câmaras, promovemos a criação de movimentos associativos em defesa do património e, a pouco e pouco, começou a surgir uma nova leitura do património, que não se referia já só aos monumentos históricos e que começava a integrar o património rural, o património industrial, etc. Foi nesse processo que eu me entreguei, a fundo, à aprendizagem do património industrial. Quando organizámos a exposição nos Jerónimos, em 1981, já apareceu um painel a dizer que havia "valores industriais" e começaram-se logo a classificar alguns imóveis, como, por exemplo, a Central Tejo. Depois, e já no âmbito da minha actividade em torno do património industrial, fui convidado, em princípios de 1982, pela dra. Natália Correia Guedes, então directora-geral do IPPC, para fazer uma exposição na Central Tejo (inaugurada em 1985, "Arqueologia Industrial: um mundo a descobrir, um mundo a defender") e é aí que começa o meu envolvimento como museólogo, lembrando cada vez mais a necessidade de entender de outra forma os recursos culturais.MJS - Seja então agora dada voz ao museólogo, que, indevidamente, coloquei no terceiro patamar da sua heteronímia, depois do professor e do arqueólogo, mas que afinal é o quarto, a seguir ao patrimonialista.JC - A museologia prende-se com a valorização do património, assumida numa dialéctica que vive, por um lado, da compreensão do contentor e, por outro, dos conteúdos. A partir dessa compreensão é que ambos - contentor e conteúdos - têm de ser analisados. Começou-se então, estávamos em 1983/4, a falar de uma nova museologia em Portugal, porque correspondia, de facto, a uma viragem nos conceitos museológicos portugueses. A nova museologia era uma atitude crítica à velha museologia e punha o dedo na ferida em relação à figura e ao papel do conservador. O que era o conservador? Havia o conceito de que o conservador visava conservar os objectos e a dinâmica que se almejava era a fruição dos bens culturais. E em que campos é que a fruição dos bens poderia ocorrer mais activamente? Dedicámo-nos de imediato aos novos patrimónios e o património industrial surgia aí como evidente, enquanto conteúdo e enquanto contentor. Envolvia as identidades, as populações, os operários, os mineiros... Não quer isto dizer que não houvesse já alguns museus com o património das empresas, mas sem qualquer atitude de afirmação. Para nós, a ideia de musealização de objectos vulgares era das mais estimulantes. MJS - Está a falar de uma década, a dos anos 80, em que, de facto, mesmo para o olhar pouco atento do cidadão comum, se sentiu um sopro novo na área das grandes exposições e dos grandes museus - a exposição da Central Tejo, a 17ª Exposição e a inovadora acção e imagem do recém-criado IPM (Instituto Português de Museus). Na sua perspectiva são estes os principais e mais visíveis marcos da mudança no meio que aqui tem estado a enunciar?JC - Claro que são. A renovação dos grandes museus começa nos finais dos anos 80 e inícios de 90, depois de se dar a cisão no IPPC, que está na base da criação do IPM. Simonetta Luz Afonso colocava-se numa postura nova, que correspondia ao desenvolvimento da crítica às estruturas anquilosadas dos museus nacionais. Mas essa nova atitude aconteceu sobretudo depois da 17ª. O grande esforço de mudança e de arejamento que Pedro Canavarro imprimiu à organização e montagem da 17ª Exposição (1984/85) marca a viragem no meio. Era a primeira vez que se fazia uma exposição polinuclear. O conceito era totalmente novo entre nós. Muito mais ainda se caminhou por via da experiência e da participação na construção dos museus industriais e na renovação dos objectivos territoriais e pedagógicos que ofereciam à comunidade.MJS - De regresso à menina dos seus olhos, a impressionante exposição na Central Tejo, que tive a sorte de poder visitar. Fale-me dos objectos mais antigos e mais raros que conseguiu localizar e expor.JC - Deixe-me pensar... a peça mais antiga vinha da Pré-História, eram os picos de mineiros, da Idade do Cobre. Já tinha havido em Portugal uma arqueologia mineira, incipiente, mal feita, e tínhamos, por isso, vários objectos da actividade mineira do homem. Foi a primeira vez que se conseguiu reunir as duas Tábuas de Aljustrel, referentes à mineração em Vipasca, tábuas romanas em cobre - uma pertence ao Museu Nacional de Arqueologia e a outra aos Serviços Geológicos. Foi uma aventura muito interessante trabalhar nas condições de preservação desses materiais, para que não se deteriorassem durante o tempo da exposição. Trazia-se um mundo novo para o palco da discussão pública: máquinas a vapor, electricidade, engrenagens, teares, tinturarias, produtos, fornos industriais, trabalhadores.MJS - Para quem não tenha particular sensibilidade ao valor cultural e civilizacional do património, por onde é que se começa uma campanha de motivação?JC - Por vários caminhos, de vários modos. Há cerca de dois anos li "O Princípio do Noé", de Michel Lacroix, um homem que trabalhou bastante no inventário do património cultural em França e que também se dedicou ao património industrial. O livro marcou-me muito, porque trata das grandes questões da actualidade relacionadas com o património e descobri nele variadíssimos pontos de ligação e convergência com o que faço e com o como faço. À pergunta porquê o património?, a resposta é simples, porque dá prazer! E porque é importante não entrarmos no reducionismo que as sociedades actuais tendem a impor a tudo - desde reduzir as várias espécies de maçãs a uma maçã única, etc. O conceito que melhor se aplica, por exemplo, ao património industrial decorre da biologia, e o património industrial português tem de ser tratado com todo o cuidado, como "em vias de extinção". A efemeridade acompanha este património e, à velocidade a que as sociedades modernas vivem, quase já só se salva o património monumental, religioso ou castelológico. Mas... não é bem assim, a nossa civilização continua a ser tributária de muitas mudanças - da electricidade, do desenvolvimento das indústrias têxteis, etc. E os vestígios desses saltos têm de ser, pela utilização e conhecimento de técnicas sofisticadas, salvaguardados e inventariados para aproveitamento actual e futuro. MJS - E é ou não aí que surge a vertente daquele outro heterónimo que existe em si, mencionado em primeiro lugar nesta conversa - o engenheiro? JC - É por aí, sim, pela técnica. A minha versão de engenheiro nasce do facto de trabalhar com a técnica, com a tecnologia, porque para se poder trabalhar em arqueologia industrial e em património industrial tem de se saber técnica. Tem de se saber contar as fábricas, com um saber feito de experiência, não se pode inventar. Fiz estágios em fábricas, dei aulas em fábricas, sobre vidro, sobre serralharia e fundição, não no sentido técnico estrito, mas no sentido tecnológico do conhecimento e da história das técnicas. A experiência que mais gozo me deu foi ter de aprender a desmontar uma enormíssima máquina a vapor, inglesa, motor central de uma fiação e tecelagem têxtil, de 300 cavalos/vapor e voltar a montá-la, noutro sítio. Tratava-se da máquina a vapor da fábrica de Soure, pertença da Fundação Belmiro de Azevedo, agora colocada no Norte Shopping, em Matosinhos. O estudo permitiu publicar um livro sobre a máquina, após ter recebido o convite para meter mãos a essa trasladação. Estudar a máquina ao pormenor foi uma aventura espantosa. Dei conta de quando a engenharia em Portugal se afastou das suas origens. Os formados em Engenharia estão de tal modo especializados em matemática abstracta que pouco sabem do real. Os engenheiros que trabalharam comigo não sabiam bem o que era uma máquina a vapor, muito menos como podia ser desmontada. A primeira reacção foi dizerem-me que a máquina tinha de ser serrada nas partes calcinadas para poder ser deslocada. Essa agora, disse eu, se a máquina foi montada por peças, tem de poder ser desmontada em peças; temos é que estudar o processo da sua montagem e da sua história técnica! Encontrei nos Arquivos de Tomar todas as referências de que precisava sobre a máquina, informei-me sobre o modo do seu funcionamento (a máquina podia ainda hoje voltar a trabalhar) e conseguiu-se, embora agora com um motor eléctrico acoplado! MJS - Onde é que, hoje, conseguiram colocá-lo, a si, que anda sempre com vontade de passarinhar por aí, à cata de mais vestígios, de mais sinais de nós? JC - Dou aulas de mestrado, a um número já razoável de alunos - 25 - interessados na área da Teoria e Conservação do Património, que é onde tenho uma pesquisa mais desenvolvida no sentido do aprofundamento destas questões. Sou, além disso, assessor principal do Ippar e estou neste momento a dirigir o Convento de Cristo, em Tomar.MJS - Está apaixonado pelo convento?JC - Estou apaixonado. Em miúdo, o meu pai tinha-me levado a visitá-lo, dormi uma vez no Castelo, olhei mais tarde, e com alguma regularidade, para aqueles fabulosos conjuntos (o castelológico e o monástico) à luz do património arquitectónico e cultural. Ver-me agora regressado àquela extraordinária obra é muito estimulante. É uma obra fantástica, porque é uma obra protagonizada por um grande pensamento, transversal a toda a História de Portugal. Por um lado, vem do mundo mediterrânico e oriental, para se erguer, por outro, frente ao mundo atlântico. Há ali uma história que de certo modo marca a linhagem da construção da Europa, nos séculos XI e XII - as Cruzadas e a luta contra o islão, acompanhada também de uma majestosa compreensão do islão. As escavações arqueológicas da dra. Salette da Ponte vieram provar que a comunidade islâmica habitava no morro de Tomar antes da chegada dos Templários. Estes, depois, aproveitaram todo aquele castelo, aquela cerca, aquela almedina e impuseram-se como líderes. Há ainda os sinais da transferência da chamada cavalaria espiritual militar para a cavalaria espiritual navegante que ali se conjugam numa evidente linha contínua. Se falarmos nos aspectos artísticos, vemos, por exemplo, que o melhor de João de Castilho (a obra magna e a obra-prima) está em Tomar e que não pode ser padronizado numa ou duas abóbadas, está presente em toda a construção monástica. Felizmente que, desde 2002, todo o conjunto que integra o Convento de Cristo (Património Mundial desde 1983) deixou de estar emparcelado e distribuído por várias entidades de tutela e está agora, na sua totalidade, sob a alçada exclusiva do Ministério da Cultura.MJS - Dê-me uma palavra de eleição.JC - Ética.