O cosmos (e o caos) segundo Herman Melville
O escritor Jorge Luis Borges escreveu, em "Prólogo com um Prólogo de Prólogos" sobre "Moby Dick", de Herman Melville, que, "página a página, o relato aumenta até usurpar o tamanho do cosmo: a princípio o leitor pode supor que o seu tema é a vida miserável dos arpoadores de baleias; depois, que o tema é a loucura do capitão Ahab, ávido de perseguir e destruir a baleia branca; depois, que a baleia e Ahab e a perseguição que percorre os oceanos do planeta são símbolos e espelhos do Universo."Os inocentes resumos de badanas dos livros diriam que "Moby Dick" é a história de um capitão, Ahab, que num confronto com uma enorme e terrível baleia branca ficou sem uma perna e decidiu vingar-se do perigoso animal. Para perseguir a baleia constituiu, num navio chamado Pequod, uma tripulação de "mestiços renegados, náufrafos e canibais", onde estava Ismael, o "nosso" narrador e herói e também Queequeg, o feio canibal que se revelou um corajoso arpoador e amigo do seu amigo. Mas "Moby Dick" não é só isso - é um enorme tratado de cetologia (ciência da baleia) e de vingança dos homens. É uma epopeia, uma obra-prima. Um combate cego e insano. "Ahab sabia-o e dizia para si próprio: as minhas armas são humanas, mas o combate que quero travar é louco", escreve Melville.Apesar disso, não é Ahab que decide quem ganha e quem perde nesse combate titânico entre o homem e a natureza. É Moby Dick que "chama" o capitão Ahab, para "uma conversa particular". Ela lança o misterioso jacto branco e solitário, quase imperceptível, que determina o rumo do navio. Ela alimenta o mito de animal feroz e indestrutível.- Viste a baleia branca? - gritou Ahab ao comandante do Celibatário, um navio com que o Pequod se cruzou em alto mar.- Não; ouvi apenas falar dela; mas não acredito em nada disso - respondeu o outro. Melville explicará que "a maior parte dos homens da terra ignorava os factos atribuídos a Moby Dick; muitos pensariam até que Moby Dick era uma fábula monstruosa ou, pior ainda, uma medonha e intolerável alegoria".Não é verdade - e Borges explica porquê. O que é "Moby Dick"? "Um cosmos (um caos) não só perceptivelmente maligno (...) mas também irracional."Às vezes, a acção do romance pára. Ainda estamos no cosmos. O narrador explica porquê. A baleia é um peixe? Melville diz que sim: "A baleia é um peixe que lança um jacto de água e possui cauda horizontal." Não será totalmente verdade, mas Melville documentou-se de relatórios, documentos, livros, pinturas, tudo para poder alimentar o mito dessa (e de outras) baleia - o terror, o medo, o horrível. Há, por isso, vários tipos de baleia: baleia-trompa, baleia corcunda, baleia de barbatana dorsal, cachalote, entre inúmeras outras. À vista da grande baleia, "todos os peixes (incluindo os tubarões) são atacados do mais vivo terror", explica do narrador.Missão de AhabO caos toma conta do mundo - a bordo do Pequod há marinheiros noruegueses, açorianos, chineses, sicilianos, malteses, irlandeses, espanhóis. Os cheiros e as línguas misturam-se com o odor intenso da maresia e do peixe. E com o medo e o entusiasmo de matar esse monstro. Porque cada combate com uma baleia "era um espectáculo surpreendente e temeroso". Ismael diz ainda que "era a brancura da baleia que acima de tudo me apavora".É ponto assente a missão do capitão Ahab: "Hei-de caçá-la em torno do cabo da Boa Esperança, em torno do cabo Horn, em redor do Mallstron da Noruega, em redor das chamas infernais, antes de desistir! Foi para isso que vocês embarcaram, rapazes; para caçar essa baleia branca de ambos os lados da Terra, por todas as paragens do Globo, até que ela espirre sangue negro e fique a boiar com as nadadeiras no ar."Ahab quer derrotar o perigoso animal - o caos irracional instala-se por fim. Esqueceu-se, contudo, da profecia de Fedallá, o seu "acessor": "Antes de morreres nesta viagem, devias ver duas carretas sobre as águas do mar; a primeira não será construída por mão humana e a outra será de madeira comum crescida na América."Ahab não prestou atenção ao presságio, no combate mortal com a baleia. "Ó doces forças do ar, segurem-me! (...) Leme a barlavento, já disse... loucos, a mandíbula! a mandíbula! É essa a paga de todas as minhas preces orgulhosas? de toda a fidelidade da minha vida? Ó Ahab, Ahab, olha para a tua obra". As palavras de Tashtego, marinheiro, são poucas para descrever o verdadeiro horror. "O navio? Grande Deus, onde está o navio?"