Peter Hedges, que tem currículo como argumentista ("Gilbert Grape", "About a Boy"), não deixa esse crédito em saco roto. O argumento é imaginativo e não desprovido de engenho, construído a partir da exploração de uma única situação. Tudo se passa durante a manhã do dia de Acção de Graças, quando uma rapariga (Katie Holmes, na foto) que vive sozinha em Nova Iorque prepara o peru para o almoço com a família, que por sua vez vem a caminho. A atenção da câmara divide-se, alternadamente, entre as peripécias (quase burlescas) de Holmes na sua tentativa de ter pronto a tempo um almoço digno da ocasião e o percurso de carro feito pelos seus familiares (é o lado "road movie" de "Pedaços de uma Vida").
Com o decorrer do filme as relações vão-se aclarando - percebe-se que a mãe (Clarkson) está doente, e que a filha é vista pela família como uma "desnaturada", embora as razões para tal nunca fiquem perfeitamente claras. Numa estrutura de paralelismos narrativos que acaba por ser bastante clássica, Hedges gere as tensões com alguma eficácia, ampliando-as ao ponto de, para o fim, o ambiente ficar próximo de um conto de "suspense": haverá peru? E, com peru ou sem ele, como será o reencontro de Katie Holmes e dos seus familiares? A rapariga é mesmo a criatura sem qualidades que a família vê nela ou são eles que não se enxergam a si próprios?
Hedges tira razoável partido da situação, construindo um olhar minimamente original sobre o tema da família como núcleo afectivo cheio de contradições. Tem a sagacidade suficiente para fugir do sentimentalismo, tratando os elementos potencialmente mais dramáticos (a doença de Clarkson) com algum humor "offbeat" e uma secura distanciada - e o final do filme é quase um anti-clímax, estranho mas justo. O que falta a "Pedaços de uma Vida" é um pouco mais de peso, um outro tipo de consistência cinematográfica, por assim dizer. Filmado naquele estilo Dogma 95 de câmara à mão colada aos actores e iluminação sem glamour, falta-lhe a veemência necessária para transformar essa opção em algo de verdadeiramente significativo e enriquecedor. O filme perde alguma coisa por aí, parece contentar-se com a sua própria discrição um tanto maquinal, sem o golpe de asa que faz a diferença entre um filme apenas simpático e uma obra com "corpo", que deixe uma marca real. Ainda assim, insistimos, é suficientemente sedutor para merecer uma espreitadela, mesmo que o espectador corra o risco de sentir que está a ser roubado no seu entusiasmo.