Adeus Reagan
Nancy Reagan, convidada a descrever a sua relação com Ronald Reagan desde que este foi atacado pela doença de Alzheimer, respondeu que era o equivalente a "um longo adeus." Para Nancy Reagan, que passou os últimos dez anos a tratar de uma pessoa que já não a reconhecia, a passeá-lo de cadeira de rodas e a proteger zelosamente a dignidade daquele que foi o 40º Presidente americano, o adeus foi longo mas chegou ao fim. Reagan passou os seus derradeiros momentos rodeado pelos filhos. Michael Reagan descreveu esses momentos como "uma mistura de lágrimas, sorrisos e histórias". Porque, como todos aqueles que acompanharam a carreira política do "Grande Comunicador" sabem, Reagan adorava contar histórias. Em jeito de homenagem, eis então uma pequena história.O assassinato do presidente John F. Kennnedy em 1963 é visto por vários historiadores como o início de uma época na América caracterizada pelo abrandar do tradicional optimismo americano e o começo de uma generalizada crise de confiança relativamente ao papel do pais no mundo. O falhanço da guerra do Vietname, o escândalo de Watergate e a crise no Irão que culminou na tomada dos reféns agravaram este sentimento de crise e falta de fé no futuro. A percepção de que a América já não era, na expressão do pioneiro John Winthrop, "uma cidade no topo da colina", culminou no célebre discurso de Jimmy Carter em que este acusava o povo americano de sofrer de "malaise", de "mal estar". A invasão soviética do Afeganistão reforçou e confirmou o "mal americano". Neste contexto, muitos foram aqueles que defenderam a inevitabilidade de se reconhecer a superioridade a longo prazo, estratégica e militar, da União Soviética e o reconhecimento dos limites do papel da América no mundo, atacada de comiseração e sentimentos de inferioridade.É neste contexto que se deve compreender o papel preponderante de Ronald Reagan. Desde o início da sua vida política, como muitos dos seus primeiros escritos e acções provam, que Reagan revelou a sua absoluta fé na superioridade do modelo americano face ao modelo soviético. Como tal, a América não devia revelar "medo" mas, confiante na superioridade moral da ideia democrática, devia caminhar "com a cabeça alta" e confrontar os soviéticos numa guerra de ideias. Como o modelo americano era intrinsecamente superior, o desfecho estava garantido à partida. O comunismo, declararia Reagan numa demonstração da sua crença, estava destinado ao "caixote de lixo da história". Assim, no primeiro grande contacto que os americanos tiveram com o "Reagan político", num discurso de apoio a Barry Goldwater, Reagan desprezou a política da "paz a qualquer custo". Nesse discurso, em 1964, mas que estabelece um paralelismo interessante com a nossa própria situação em 2004, Reagan afirmou, relativamente à forma de atingir a paz: "eu e vocês temos a coragem de dizer aos nossos inimigos que existe um preço que nós não pagaremos, que existe uma linha divisória à qual eles não passarão". Reagan manter-se-á fiel a este princípio e, com uma convicção missionária, defenderá sempre a superioridade das sociedades abertas face às sociedades claustrofóbicas do império soviético. Porque haveriam de ser as democracias, ancoradas naquilo que ele chamava "o fogo sagrado da liberdade", a ceder? As sociedades inferiores eram as sociedades totalitárias, eram essas que desvalorizavam o Homem e negavam-lhe a sua própria humanidade. Como tal deviam ser elas a ceder. Para desespero de muitas personalidades da "intelligentsia" europeia e americana, Reagan caracterizou esta luta em termos religiosos, de luta entre o bem e o mal. A democracia representava o "Bem" porque libertava o homem, enquanto que o jugo soviético, porque aprisionava o homem numa Gulag mental, representava o "Mal". De forma a reforçar e a dar substância a esta guerra de ideias, Reagan reforçou o sistema militar americano, nomeadamente através do posicionamento de mísseis na Europa e reforçou o apoio a guerrilhas anticomunistas na América Latina. Ao optar por uma política de confrontação, Reagan assumiu enormes riscos e despertou o pânico e o medo no mundo Ocidental. Muitos convenceram-se que Reagan ia começar a terceira guerra mundial. Reagan era visto como um homem simplista e perigoso. As palavras do seu adversário, Walter Mondale, na campanha eleitoral de 1984, são reveladoras deste estado de espirito: "Nós precisamos de um Presidente que veja o mundo como o mundo é, com todas as suas subtilezas, complexidades, perigos, um homem com experiência, que saiba de história."Mas Reagan não se deixou atemorizar e manteve-se fiel à sua convicção de que o comunismo estava destinado ao falhanço. Não obstante o medo, não houve terceira guerra mundial. A política de confrontação de Reagan, com a ajuda de Tatcher e a acção do Papa, contribuiu decisivamente para o fim da cortina de ferro. E o império soviético não precisou de tiros para cair: desmoronou-se ao som de celebrações em massa. O optimismo quase messiânico de Reagan teve confirmação na própria história. "Ele acreditou sempre que todas as pessoas querem ser livres," declarou Bill Clinton a propósito de Reagan, "que a liberdade é um valor universal, esse é o seu legado." De facto, Reagan, quer através de uma política doméstica que lançou a América num período de enorme prosperidade, quer por intermédio de uma política externa que ensinou de novo a América a caminhar de cabeça erguida, contribuiu decisivamente para restituir ao pais a autoconfiança e o orgulho que lhe vinham faltando desde há algumas décadas. Quando muita gente pensava que os dias de esplendor da América pertenciam ao passado, Reagan restituiu aos americanos a convicção de que o esplendor estava no futuro. Reagan devolveu a América a si própria, ao seu optimismo original. Para ele, as crises eram um teste à grandeza da América e nunca uma premonição de decadência. Como tal serão sempre ultrapassadas. Esta é a grande dívida que a América lhe tem. A fim de "pagar" este débito, muitas estradas, hospitais e escolas foram apelidadas "Ronald Reagan". O próprio aeroporto da capital tem o seu nome. Existe mesmo uma proposta para pôr a sua face numa moeda. Mas a grande contribuição de Ronald Reagan para o país que o viu nascer foi sobretudo psicológica. "Amanhece de novo na América" era o lema do seu governo. Amanhecer como despertar de forças e energias. Reagan encontrou a noite. Mas o amanhecer continua na América. Adeus Reagan.Universidade de Boston