Killing/no killing

Não se trata apenas de uma homenagem explícita ao cineasta de "O Ano Passado em Marienbad" (1961) e de "Smoking/No Smoking" (1993), como transparece da dedicatória ao genérico final: usam-se os actores emblemáticos de Resnais - Sabine Azéma e Pierre Arditi - também a fazerem de si próprios - e trabalha-se a narrativa com o poder do aleatório e da inventividade total. Os capítulos estão sinalizados, a intriga denuncia-se e apresenta-se em excertos de diálogos escritos na tela, tirando ao espectador a dimensão de um envolvimento mimético. A adesão catártica do cinema aparece constantemente negada, apelando à inteligência para construir alternativas de ponto de vista.

O prazer de seguir o "whodunnit" e da descoberta do "assassino" não estão ausentes, mas exige-se sempre a noção de que um filme e uma construção complexa de sentidos estão a erguer-se ante os nossos olhos e a pedir um espectador cúmplice. A estratégia de trabalhar os inventos do professor Stangerson (excelente Michel Lonsdale, de "chabroliana" memória) lembra outras ficções "científicas" de Resnais, como "O Meu Tio da América" (1980). As figuras de Rouletabille (jornalista e detective, interpretado pelo próprio realizador, Bruno Podalydès) e do juiz (Claude Rich, também inesquecível num filme de Resnais, "Je t'Aime, Je t'Aime", 1968) parecem surgir de uma rarefacção de género entre o policial e o fantástico.

Já havia uma adaptação ortodoxa do romance de Leroux, que não vimos, assinado por Marcel L'Herbier; o que os irmãos Podalydès fazem é insuflar o "serial", a "pulp fiction" francesa de culto de um humor corrosivo e ligeiro, citando de passagem os Dupont et Dupond de "Tintin" ou outras duplas vindas do burlesco cinematográfico (Bucha e Estica passam também por aqui); o mágico Houdini emerge em efígie da personagem de Arditi. O prazer lúdico do jogo perpassa por todas as delirantes peripécias num ritmo frenético, quase exasperante e cansativo de tão envolvente. Este gesto de revalorização de uma cultura "pop" quase esquecida tem porém o seu reverso possível: perdemos de vista o objecto de origem, numa vertigem de colagens sucessivas. Entramos na lógica da BD e dos seriais, tipo "Fantomas", com a noção de que se está a fazer um discurso "erudito" sobre o "popular". Deste modo, "O Mistério do Quarto Amarelo" pode (e deve) alienar o leitor despreocupado do policial de Leroux, exigindo um espectador sábio e atento. O que se ganha em inteligência, perde-se em inocência. O filme cansa, a sua verve derrota a atenção, perde-se em detalhes preciosos, mas, por vezes, inúteis.

De tanto glorificar as "artes menores", com um aparato e grande arte autoreflexiva, Bruno Podalydès falha o divertimento, sempre querendo ir mais além, numa contradição que denota os grandes riscos da modernidade. O resultado é pois duplo, atrai e repele, convoca e confunde, numa interessante mistura de tons e de estilos, sempre com Resnais como modelo.

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