O passo decisivo na solidificação desse amor foi dado quando conheceu Pier Paolo Pasolini, o qual viria a tornar-se uma espécie de mentor para Bertolucci, que serviu de assistente em "Accatone" (1961), o primeiro filme do controverso realizador. Por isso, não espanta que a estreia profissional de Bertolucci se tenha feito também sob a égide de Pasolini, adaptando uma história escrita por este: "La Commare Seca" (1962). Ou que o autor de "Saló" lhe tenha transmitido as influências determinantes de Freud e Marx (bem como o gosto pelo choque e provocação), que se sentirão em toda a sua obra.
Os filmes seguintes - "Antes da Revolução" (1964) e "Partner" (1968) - revelaram-no internacionalmente, mas, tal como o primeiro, não conheceram grande êxito comercial. Como consequência, a procura de outros projectos, como a realização de documentários e a colaboração no argumento do "western" monumental de Sergio Leone, "Aconteceu no Oeste" (1968). Mas 1970 seria o ano do segundo fôlego na carreira do italiano, com o sucesso de "A Estratégia da Aranha" e "O Conformista", obras que o projectaram em definitivo como um dos mais importantes cineastas mundiais.
E se o segundo desses títulos já havia causado alguma polémica, o celebérrimo "O Último Tango em Paris" (1972), pelo seu erotismo cru, chega mesmo ao escândalo. No auge da popularidade, Bertolucci arriscou depois o gigantesco "1900" (1976), desmesurado fresco (talvez a obra-prima do realizador, que o descreveu como "um 'E Tudo o Vento Levou' socialista") por onde passam meio século de história italiana e uma parada de estrelas: Robert De Niro, Gérard Depardieu, Alida Valli, Burt Lancaster ou Donald Sutherland.
O fracasso dos mais intimistas "La Luna" (1979) e "Tragédia de um Homem Ridículo" (1981) levou, no entanto, a um novo período de apagamento e durante a década de 80 o realizador só voltaria a filmar mais uma vez: em 1987, com "O Último Imperador". Uma opção que não poderá ser dissociada da realidade sociopolítica do Ocidente: envergando desde sempre a pele do cineasta anti-conformista, Bertolucci pertence a uma geração que sonhou mudar o mundo e não o conseguiu. O desencanto perante a sociedade de consumo - que, segundo o cineasta, criou um "genocídio cultural" - levou-o então a procurar outros caminhos e valores.
Um filme para criançasÉ nessa lógica de demanda que o DVD de hoje, "Pequeno Buda" (1993), se enquadra, capítulo final de uma trilogia em paisagens remotas: China, em "O Último Imperador" (outro épico, vencedor de nove Óscares e responsável pelo regresso de Bertolucci à ribalta); Marrocos, em "Um Chá no Deserto" (1990); e, neste caso, Butão e Nepal. Nele, Bertolucci revela o fascínio pelas religiões orientais, em especial o budismo, que descobriu há quase 40 anos, quando leu um livro sobre Milarepa, santo tibetano do séc. XI.
O interesse por uma filosofia que coloca o homem no centro ("É o mais fascinante, ser uma religião sem Deus", disse Bertolucci) fez nascer a vontade de fazer um filme sobre "a inteligência da bondade, que na nossa cultura ocidental é considerada pouco interessante, um valor que não se conjuga com a inteligência". E desse desejo nasceu o objecto mais atípico do realizador, já que mesmo nas duas obras anteriores os temas centrais da política e sexualidade surgiam ainda em destaque. Aqui, não, e todos os vestígios de agressividade e relações conflituosas desaparecem, como se Bertolucci tivesse atingido o apaziguamento próprio da serenidade.
Para levar a bom porto um projecto tão ambicioso, o realizador reuniu-se de habituais colaboradores. Alguns da fase mais recente sob o signo da viagem, outros velhos comparsas de tempos mais distantes. No primeiro caso, encontramos Mark Peploe, que já escrevera com Bertolucci os argumentos para "O Último Imperador" e "Um Chá no Deserto" (desta vez, a co-autoria é partilhada com Rudy Wurlitzer, que tem no currículo coisas extraordinárias como "Two-Lane Blacktop", de Monte Hellman; "Pat Garrett and Billy The Kid", de Sam Peckinpah; ou "Walker", de Alex Cox). No segundo, avulta Vittorio Storaro, sem dúvida um dos maiores directores de fotografia da actualidade.
À frente das câmaras as escolhas já foram menos óbvias, pois dificilmente alguém pensaria no cantor Chris Isaak como engenheiro em crise ou em Keanu Reeves para interpretar o todo sabedor Buda. Mas dizer que a originalidade do filme se esgota no elenco seria injusto, pois o seu grande trunfo é precisamente a forma singular como ele se constrói como uma fábula infantil, apostando num tom de ingenuidade e maravilhamento que tem tanto de desarmante como de sedutor.
Assim, não será de espantar que "Pequeno Buda" comece, como qualquer conto que se preze, com as palavras "Era uma vez...". Afinal, como afirmou o realizador, trata-se de "um filme para crianças, porque os ocidentais são como crianças na sua ignorância do budismo". Daí o título, pois o filme assemelha-se de facto a um pequeno manual de budismo, a servir o bê-á-bá da religião. Quando o pequeno Jesse Conrad lê, deslumbrado, a lenda de Siddartha - que, 2.500 anos antes, decidiu atingir a iluminação e se tornou Buda -, abre-se uma janela com vista para a paisagem sumptuosa e mágica de uma cultura exótica. Nas palavras de Bertolucci, "todos temos um pequeno buda dentro de nós".