Debaixo d'olho
"2046", de Wong Kar-waiHá quatro anos que está em produção. Conhecidos que são os métodos do realizador de Hong Kong (filma sem argumento, interrompe a rodagem para se dedicar a outros projectos, e quando regressa já tudo mudou), o que quer que se possa dizer sobre "2046" é arriscado. O título? É o número a que se chega se contarmos 50 anos a partir da data do regresso de Hong Kong à China e da promessa dos dirigentes chineses de que nesse espaço de tempo nada iria mudar. Também é o número do quarto de hotel em que o homem e a mulher (Tony Leung e Maggie Cheung) traídos pelos respectivos cônjuges, em "Disponível para Amar" (anterior filme do cineasta), se encontravam. A hipótese de "2046" ser, então, uma continuação desse filme tem pernas para andar. Desta forma: Maggie Cheung deixou Tony Leung e este torna-se um escritor solitário. Conhece uma prostituta (Zhang Ziyi), passa com ela uma noite... no quarto 2046... e começa a escrever um romance, intitulado... "2046"..., onde aparecem vários pares, entre os quais um casal de robôs. Cruzam-se níveis narrativos, há ficção científica, mas é ainda mais intrigante: segundo o próprio Wong Kar-wai, as várias histórias dentro do filme são adaptações de três óperas, "Madame Butterfly", "Carmen" e "Tanhauser"."The Motorcycle Diaries", de Walter Salles"Um cruzamento entre 'Easy Rider' e ' O Capital'", assim foi recebido, na altura da publicação, "The Motorcycle Diaries", os diários em que Ernesto Guevara, estudante de medicina, contou a sua viagem pela América Latina em 1952, quando tinha 23 anos. Uma motocicleta, um amigo, Alberto Granado, e um idealismo pronto a ser alimentado. Aquilo que viu, fê-lo encontrar a sua missão, e foi assim que, no final desse périplo, Ernesto partiu para ser Che, o mito. É essa geografia territorial e a formação de um mapa utópico que o brasileiro Walter Salles quis filmar, dando o papel de jovem Che ao mexicano Gael García Bernal, rosto incontornável do festival já que é o protagonista de "La Mala Educación", de Almodóvar. Exibido no último Festival de Sundance, "The Motorcycle Diaries" teve recepção apoteótica."Fahrenheit 911", de Michael MooreDepois da inclusão no Palmarés de Cannes, em 2002, de "Bowling for Columbine" - e depois do Óscar em 2003 a Michael Moore, e do discurso que quis inflamar a fleuma de Beverly Hills, em noite de Academia, contra a intervenção americana no Iraque -, Cannes prepara-se para ser sacudida com outro documentário do cineasta, que já fez estragos na relação entre o estúdio Disney e a sua filial Miramax. Esta preparava-se para distribuir o filme nos EUA, mas a Disney não considera apropriado ver o seu nome, sinónimo da Família Mítica Americana, associada a um filme de um justiceiro populista que denuncia as ligações entre a familia Bush (concretamente, George Bush pai) e individualidades sauditas, entre as quais a família de Osama Bin Laden (concretamente, o magnata Mohammed bin Laden, que deixou 300 milhões de dólares ao filho, Osama). "Fahrenheit 911", o rescaldo do 11 de Setembro - "o título quer dizer a temperatura a que a liberdade arde", disse o realizador -, pretende demonstrar ainda como "George Bush aproveitou o 11 de Setembro e a morte de cerca de 3000 pessoas como desculpa para pôr em prática a sua agenda conservadora". É um dos títulos mais quentes do festival."La Vie est un Miracle", de Emir KusturicaBósnia, 1992. Um engenheiro sérvio, Luka, chega de Belgrado com a mulher, Jadranka, cantora de ópera, e o filho, Milos. Instalam-se numa cidade no meio do nada, onde a construção de uma linha de caminho-de-ferro vai transformar a região num foco de atracção turística. Inebriado pelo seu optimismo natural, Luka não liga aos rumores da guerra. Mas a sua vida é feita em pedaços: a mulher abandona-o, o filho é feito prisioneiro no conflito. Só que nasce um amor: entre Luka, sérvio, e Sabaha, refém muçulmana. São estes os actores num palco, os Balcãs, de guerra em "La Vie est un Miracle". Um excêntrico "drama shakespeareano", segundo Kusturica, assumindo que no retrato do engenheiro incrédulo perante o desmoronar do seu país está o seu próprio retrato. "Diria que é um filme tristemente optimista, porque Luka abre-se à perspectiva do amor. Hoje, tudo o resto desapareceu. A morte, hoje, é um fenómeno vulgar e quotidiano. Por isso, no nosso mundo desprovido de utopia temos de construir a nossa própria utopia, porque cada espírito salvo, cada alma salva, traz-nos sempre alguma coisa", disse o realizador."La Niña Santa", de Lucrecia MartelÉ a subida de divisão para a cineasta argentina: depois de uma magnífica primeira-obra, "O Pântano", Lucrecia Martel encontra-se no meio dos maiores nomes do cinema no mais importante festival do mundo, para mostrar se a promessa é certeza. Apresenta-se pela primeira vez em competição em Cannes. "La Niña Santa", segundo a realizadora, traz dados do filme anterior (a geografia: filmado na mesma região; Salta, que servia de cenário à letargia de uma família da burguesia; o tom sussurrado e secreto das relações), mas oferece um registo mais humorístico. A história? A de uma menina de coro com experiências sobrenaturais e a de um idoso, que ela encontra na rua, e que decide salvar. A questão é de misticismo e erotismo, e é posta assim: "O que quis mostrar é como os caminhos do bem às vezes podem confundir-se com os caminhos do mal, e como as boas intenções podem dar origem a algo de daninho."