Reencontro com o diabo

E nessa lógica de alternância, sobressai a presença repetida do cinema fantástico, um campo a que Polanski dedicou particular atenção. Nomeadamente, numa fase ainda inicial da obra, já que, depois de se ter afirmado como um dos nomes fortes do Cinema Novo polaco, graças a "A Faca na Água" (1962), iniciou a aventura pelo estrangeiro e assinou um trio de clássicos de terror: em Inglaterra, "Repulsa" (1965), numa veia mais psicológica, e "Por Favor, Não Me Morda o Pescoço" (1967), a abrir caminho à paródia; nos EUA, o incontornável "A Semente do Diabo" (1968), já numa lógica de sobrenatural puro e duro.

A seguir, Polanski preferiu avançar para outros territórios, apesar de, atrás das câmaras, o horror não o ter largado: em 1969, a tragédia bateu-lhe à porta, quando a mulher, a actriz Sharon Tate, foi assassinada pelo clã de Charles Manson, na sua casa de Los Angeles. Talvez por isso só tenha regressado aos terrores cinematográficos em 1976 (já depois de rodar aquela que é a sua obra-prima máxima, "Chinatown", título mítico da "Nova Hollywood" dos anos 70), com "O Inquilino", qualquer coisa como uma variação no masculino (com o próprio realizador no papel do perturbado protagonista) de "Repulsa".

Desde então, muito aconteceu. Por exemplo, o escândalo que, em 1977, levou Polanski a fugir dos EUA, sob pena de prisão por violação (condenação ainda em vigor e que o impediu até de receber em pessoa o Óscar conquistado, o ano passado, por "O Pianista"), após envolvimento sexual com uma menor de 13 anos. Ou o consequente "exílio forçado" para a Europa, por onde hoje deambula, que poderá (ou não) ser responsável pela escassa produção do cineasta, muito espaçada no tempo, nas duas últimas décadas.

No entanto, algo teimava em não ocorrer: o muito aguardado regresso ao fantástico. Até que o realizador anunciou a adaptação de "O Clube Dumas", romance do espanhol Arturo Pérez-Reverte. Daí resultaria "A Nona Porta" (1999), o DVD de hoje na série Y, uma co-produção luxuosa, filmada em vários países (incluindo Portugal, via Sintra), com a colaboração de técnicos de renome mundial, como o director de fotografia Darius Khondji e o director artístico Dean Tavoularis. Para o papel principal, Polanski escolheu uma singular estrela americana, Johnny Depp, por achar que "o sorriso e charme, a perversidade ocasional" do actor seriam perfeitos para a ideia que tinha do protagonista.

Um concentrado polanskiano

Só por aqui se percebe a dimensão do projecto. E não era para menos, por se tratar não só de um retorno a um género de onde saíram alguns dos melhores exemplos do cinema do realizador, como de um novo olhar sobre o sobrenatural, 30 anos após o objecto marcante que foi "A Semente do Diabo". E a julgar pelas palavras de Polanski - "Faço os filmes que gostaria de ver como espectador; ao realizar, satisfaço o meu apetite por um filme que ainda não existe" -, fica a ideia de que já tinha saudades de um "velho amigo" em especial e lhe apetecia voltar a cruzar caminho com o Demónio...

E para este reencontro tão esperado, a história que lhe serve de suporte é, em resumo, esta: um especialista (Depp) em localizar edições literárias raras, cínico e de poucos escrúpulos, é contratado para reunir as três últimas cópias de um livro que contém as indicações para invocar o Diabo, porta para o poder absoluto. A princípio céptico ("Em que acredita?", perguntam-lhe; "Na minha percentagem", responde), acaba totalmente envolvido no mistério que tenta resolver, obcecado pelo fascínio sedutor do Mal.

Temos assim um "cocktail" de motivos e situações puramente polanskianas, com destaque para o tema central do indivíduo que deambula por espaços que lhe são estranhos e se tornam pesadelo. Além disso, os sinais - demónios, cultos e rituais satânicos, castelos medievais - que reenviam para as experiências anteriores do realizador no fantástico surgem "cosidas" segundo um esquema de "film noir", como num "Chinatown" do outro mundo. Os elementos estão todos lá: o protagonista moralmente ambíguo (o "detective de livros" a fazer as vezes de um qualquer "private eye"); as mulheres dúplices (Lena Olin, mais próximo da arquetípica "femme fatale"; Emmanuelle Seigner, menos "aprisionável", etéreo lobo em pele de cordeiro); a intriga tortuosa e labiríntica.

Consciente de que, para si, o material abordado já não é novidade (também não faltam as típicas personagens bizarras e o humor excêntrico), Polanski aposta no que é o aspecto mais curioso de "A Nona Porta": a oscilação entre o tom absolutamente sério de "A Semente do Diabo" e a irrisão de "Por Favor, Não Me Morda o Pescoço" (aproximando o filme de uma voluntária série Z, à qual vai até buscar Jack Taylor, habitual comparsa de Jess Franco). Uma opção que lhe permite recriar marcas de estilo e, ao mesmo tempo, impor um distanciamento irónico em relação às mesmas.

O resultado constitui um charmoso divertimento ("Estava mais interessado em contar uma história do que em fazer uma declaração filosófica", afirmou o realizador), com realce para a elegância da "mise en scène", feita de planos longos e cadência hipnótica, a confirmar mais uma vez Polanski como mestre na criação de ambientes e atmosferas de desconforto e inquietação.

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