Soldados americanos cometeram "actos criminosos, sádicos, vergonhosos"
A Administração norte-americana tentou ontem acalmar a polémica provocada pela divulgação das fotografias de abusos cometidos contra prisioneiros no Iraque, mas as denúncias, depoimentos e novas revelações continuam a multiplicar-se. O Presidente George W. Bush condenou os actos e garantiu que os responsáveis serão punidos, enquanto o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld considerou "as acções dos soldados nas fotos totalmente inaceitáveis e não-americanas". Falando na ONU, o secretário de Estado Colin Powell prometeu que "estes indivíduos serão apresentados à justiça militar". Mas congressistas americanos, que se queixaram de ter sido "deixados na ignorância", saíram ontem de um "briefing" à porta-fechada com responsáveis do Pentágono afirmando que abusos semelhantes aos que foram revelados na semana passada foram cometidos - embora em "número reduzido" - noutros estabelecimentos prisionais no Iraque e também no Afeganistão.Os congressistas democratas querem agora saber por que é que os principais responsáveis do Pentágono e o Presidente George W. Bush não leram um relatório realizado pelo general Antonio Taguba, no qual já se traçava um quadro preocupante da situação na prisão de Abu Ghraib, em Bagdad, com uma descrição de "actos criminosos, sádicos, vergonhosos e gratuitos". Segundo disse ontem o Departamento da Defesa, este relatório surgiu na sequência de uma investigação "de alto nível" realizada pelos responsáveis militares americanos já no Outono passado e da qual tinham sido já retiradas "algumas conclusões", que serviram depois de base ao trabalho do general Taguba. O conteúdo do relatório deste general só foi revelado num artigo recente na revista "New Yorker", assinado pelo veterano do jornalismo de investigação Seymour Hersh. O que os democratas perguntam é a razão por que Bush não foi informado e por que é que o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, e o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general Richard Myers, ainda não o tinham lido dois meses depois de ele ter sido concluído. Na sua investigação, o general Taguba afirma que os abusos e humilhações de prisioneiros iraquianos que ocorriam em Abu Ghraib - uma prisão já tristemente célebe durante o regime de Saddam Hussein - eram não apenas comuns, mas eram mesmo encorajados pelos responsáveis dos serviços secretos militares. Segundo o relatório, esses abusos eram rotineiros e os que os cometiam não pareciam recear qualquer sanção. Este é, aliás, o argumento que está a ser usado pelos militares que foram identificados e castigados. A mulher de um deles, o sargento Ivan Frederick, afirmou ontem que os soldados acusados dos abusos estavam apenas a cumprir ordens e que estão agora a ser usados como bodes expiatórios para proteger os seus superiores. Frederik terá sido um dos soldados que teve dúvidas quanto aos métodos usados, e falou nisso em mensagens enviadas à família. "Fiz perguntas sobre o que tinha visto, como por exemplo os prisioneiros serem deixados nas celas sem roupas ou com roupa interior de mulher, a resposta que recebi foi 'são os serviços secretos militares que querem que seja assim'", conta numa das cartas. O relatório revelado pela "New Yorker" descreve também uma situação de confusão quanto às responsabilidades dentro do estabelecimento prisional, com os guardas a estabelecerem as suas próprias regras num local com demasiados presos e um número insuficiente de guardas. Pormenores divulgados pelo jornal "Los Angeles Times" indicam que os responsáveis perdiam o rasto dos detidos, que havia fugas que nem sequer eram registadas, que os principais comandantes não conseguiam chegar a acordo sobre quem dirigia os blocos prisionais, se a polícia militar ou os serviços secretos militares. Depois da divulgação das fotografias que mostram presos nus a serem humilhados pelos soldados americanos, vários detidos começaram também a relatar o que sofreram no Iraque. As histórias são muito semelhantes: celas sobrelotadas, sem quaisquer condições de higiene, com presos doentes sem receberem tratamento, espancamentos com cabos eléctricos, presos obrigados a despirem-se, a simular actos sexuais, a serem sodomizados, ou ameaçados com cães e com armas. Os relatos estão a chocar o mundo árabe. O correspondente da BBC no Cairo relatava ontem como nos jornais, nos cafés, nas televisões não se vê outra coisa senão as fotos de presos nús, de cabeças tapadas, a serem humilhados pelos soldados americanos. "A situação não mudou no Iraque; só o guarda da prisão é diferente", dizia um comentário do canal árabe al-Arabiya. O ódio aos americanos atinge novos níveis, mesmo no café onde o mesmo repórter assistira a cenas de alegria e festa quando há um ano o Exército americano entrou em Bagdad e derrubou Saddam. Hoje já ninguém defende a coligação, conta.Mohammed El Oifi, especialista dos "media" árabes entrevistado pelo diário francês "Libération" acha que se chegou a um ponto de não retorno: "Os americanos perderam a batalha da opinião iraquiana. Já não lhes é possível conquistar os corações e os espíritos. O que lhes resta é ou a força ou a corrupção".