O programa "petróleo contra alimentos": uma perspectiva da ONU
À medida que se aproxima o prazo de 30 de Junho para o restabelecimento da soberania iraquiana, é cada vez mais evidente que as Nações Unidas serão chamadas a desempenhar um papel crucial na transição, ajudando a formar um governo provisório, que exercerá o poder no Iraque de 1 de Julho até à realização de eleições, em Janeiro de 2005, e dando assessoria em matéria de organização dessas eleições.Alguns críticos das Nações Unidas pretendem contestar a aptidão da Organização para desempenhar esse papel, esgrimindo acusações de corrupção e má gestão do programa "petróleo contra alimentos", por meio do qual, no período compreendido entre 1996 e 2003, o Conselho de Segurança das Nações Unidas tentou atenuar o sofrimento infligido ao povo iraquiano por sanções que visavam o regime de Saddam Hussein.Embora ainda não se tenha apurado se essas acusações têm fundamento, o Secretário-Geral Kofi Annan está a levá-las muito a sério. Há duas semanas, nomeou um grupo de personalidades eminentes que encarregou de investigar tais acusações.É difícil imaginar pessoas mais qualificadas para empreender essa tarefa do que as três personalidades escolhidas pelo Sr. Annan: Paul Volcker, ex-Presidente do Sistema da Reserva Federal dos Estados Unidos; Richard Goldstone, que teve uma actuação destacada na Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul, que investigou conscienciosamente os abusos cometidos pelo regime de apartheid; e Mark Pieth, um dos peritos mais proeminentes do mundo em matéria de problemas relacionados com o suborno e o branqueamento de capitais. Estas três personalidades gozam de um merecido renome pela sua integridade, conhecimentos especializados e capacidade de apurar a verdade.O grupo investigará não só os actos dos funcionários da Organização mas também os dos agentes e fornecedores contratados pela ONU ou pelo Iraque, no contexto do programa "petróleo contra alimentos". Terá acesso a todos os documentos e a todos os funcionários das Nações Unidas. O Conselho de Segurança apelou a que todos os governos cooperassem inteiramente com o grupo. E o Sr. Annan prometeu aplicar sanções a todos os funcionários da ONU que tenham cometido irregularidades e não aceitará que nenhum dos autores de infracções invoque a sua imunidade.Como disse o próprio Sr. Volcker, "as acusações causam sempre algum dano, mas o importante é descobrir se têm ou não fundamento. Se tiverem fundamento, é preciso que os factos sejam conhecidos sem demora e cauterizar a ferida."Ninguém deve fazer um juízo prévio sobre as conclusões do grupo. De momento há apenas acusações - algumas delas são precisas, contra pessoas concretas; outras são vagas e gerais e muitas delas baseiam-se em ideias erradas sobre a natureza e o objectivo do programa.Alguns números muito citados estão, obviamente, errados.Por exemplo, o programa "petróleo contra alimentos" não representou um valor superior a 100 000 milhões de dólares (EUA), a não ser que se contem as verbas duas vezes, somando as exportações de petróleo às importações humanitárias. As vendas de petróleo iraquiano ao abrigo do programa elevaram-se, no total, a 64 200 milhões de dólares, durante os sete anos em que esteve em vigor.Por outro lado, é errado afirmar, como faz o General Accounting Office (GAO - Gabinete Geral de Contabilidade) dos Estados Unidos, que "entre 1997 e 2002, o antigo regime iraquiano obteve receitas ilícitas no valor de 10 100 dólares, graças ao programa "petróleo contra alimentos", pois mais de metade dessa soma (5700 milhões de dólares) corresponde a "petróleo que saiu do Iraque por meio de contrabando", violando as sanções da ONU. Tal contrabando, que já se fazia muitos anos antes da criação do programa, não tem nada que ver com este.Os funcionários da ONU careciam de um mandato e de meios para impedir esse contrabando. Essa tarefa competia à Força Multinacional de Intercepção, criada pelo Conselho de Segurança em 1990, e às autoridades nacionais dos países pelos quais o petróleo transitava. Quando se criou o programa "petróleo contra alimentos", os seus agentes foram unicamente autorizados a verificar as quantidades de petróleo exportadas legalmente pelo Iraque e que passavam por dois pontos de exportação especialmente designados. Resta, pois, um saldo de 4400 milhões de dólares - se os números do GAO estiverem correctos - que poderia ter sido objecto de "apropriação ilícita" de dois modos, a saber:Primeiro, há indícios de que Saddam subfacturou as suas vendas de petróleo, pelo que não foi depositado na conta de garantia bloqueada pela ONU o preço total do produto e restou uma margem secreta que era exigida aos compradores e não era declarada à ONU, mas sim depositada em contas secretas ou embolsada por intermediários a quem Saddam entregava certificados negociáveis, a título de favores políticos. Os inspectores do petróleo das Nações Unidas tomaram conhecimento desta prática em 2000 e notificaram o Conselho de Segurança, que, alguns meses depois, acordou que, a partir daí, o Iraque teria de fixar os seus preços retroactivamente, a fim de assim se reduzir a margem para retirar prémios ilícitas.Segundo, Saddam incentivava as empresas a que adquiria alimentos e outros bens autorizados no quadro do programa a sobrefacturar as suas mercadorias e exigia que depositassem a diferença não na conta de garantia bloqueada pelas Nações Unidas, mas sim em contas secretas que ele próprio controlava. Estes abusos eram muito mais difíceis de detectar pelos funcionários da ONU. Em alguns casos, contestaram de facto os preços e, quando não obtiveram uma resposta satisfatória, transmitiram as suas reservas ao Comité de Sanções do Conselho de Segurança, ao qual competia dar a aprovação final dos contratos. Todo o programa foi concebido e supervisionado pelo Conselho de Segurança e os 15 membros deste órgão foram membros do Comité. Qualquer dos membros do Comité podia suspender um contrato para realizar uma investigação mais aprofundada. Os Estados Unidos e o Reino Unido suspenderam milhares de contratos, argumentando que as mercadorias em questão se podiam destinar a usos militares. Em nenhum desses casos, desde 1998, manifestaram preocupações em relação ao preço ou qualidade das mercadorias. Só depois da queda de Saddam Hussein é que se conheceu inteiramente a escala desses "subornos".Por último, independentemente dos lucros ilícitos que Saddam possa ou não ter obtido neste processo, o programa forneceu uma ração básica de alimentos aos 27 milhões de habitantes do Iraque. Entre 1996 e 2001, o consumo de alimentos do iraquiano médio aumentou de 1200 para 2200 quilocalorias por dia. A malnutrição das crianças iraquianas sofreu uma redução de 50% durante a vigência do programa, o mesmo tendo acontecido com a mortalidade de crianças com menos de cinco anos, no Centro e no Sul do país. No mesmo período, erradicou-se a poliomielite no Iraque, graças às campanhas de vacinação financiadas pelo programa.A conjugação das pressões das sanções e do regime opressivo de Saddam fez da década de 1990 uma década sombria para a maioria da população iraquiana. A principal responsabilidade por essa situação recai sobre Saddam Hussein, que não só impôs um regime brutal mas também concitou a ira do mundo contra o seu país, primeiro, quando invadiu o Kuwait e, depois, quando se recusou a cooperar plenamente com os inspectores de desarmamento da ONU. O programa "petróleo contra alimentos" representou um esforço para poupar ao povo iraquiano algumas das privações mais duras que os seus dirigentes tinham provocado. Não há dúvida de que poderia ter sido melhor concebido e melhor executado. Mas cumpriu com êxito a sua missão fundamental.Director de Comunicação do Gabinete do Secretário-Geral da ONU