Homens em perda

Depois do estrondoso sucesso de "Adão e Eva" (1995) e "Tentação" (1997), "Inferno" (1999) carregava um fardo pesado: ser o sucessor dos maiores êxitos comerciais do cinema português. Dito de outro modo: se os dois filmes anteriores de Joaquim Leitão tinham quebrado recordes de bilheteira, esperava-se que o novo também o fizesse.

E, à partida, tudo apontava nesse sentido. Até porque os elementos de uma equação bem sucedida voltavam a estar reunidos, numa co-produção entre a MGN, a Lusomundo e a SIC. Mais: havia que contar ainda com a participação de duas companhias espanholas, um orçamento avantajado e a presença de um elenco recheado de nomes conhecidos, de Joaquim de Almeida a Ana Bustorff, passando por Nicolau Breyner, Rogério Samora, Júlio César ou o jornalista Carlos Narciso.

Mesmo com todos estes trunfos, o filme acabou por ficar aquém dos números aguardados. O que talvez se explique pelo facto de, entre outras coisas, abordar a questão da guerra colonial, que, até à altura, ainda não tinha sido muito tratada no cinema português. E, contrariamente às expectativas, ficava a ideia de que, apesar da distância trazida pelos anos, o público não estava ainda preparado (ou interessado) para revisitar as memórias desses tempos. Ainda assim, não deixa de ser curioso notar que, recentemente, surgiram outros filmes a lidar, de modo mais ou menos directo, com o tema: "Preto e Branco", de José Carlos de Oliveira, e "Os Imortais", de António Pedro Vasconcelos.

De qualquer forma, os resultados financeiros de um objecto fílmico não devem ser empolados em demasia, a não ser por aqueles que vivem obcecados por eles. O que nunca foi o caso de Joaquim Leitão. "Só faço os filmes que quero" ou "Não me vou tornar nunca num realizador de aluguer" são declarações de intenções por demais esclarecedoras, consubstanciadas no conjunto de uma obra que tem conseguido produzir o que por vezes parece impossível: filmes que possam (pelos menos, em teoria) agradar e chegar a um público alargado, não desprezando a componente espectáculo, mas sem nunca fazer pouco da inteligência de quem os vai ver ("Para que as pessoas tenham prazer com uma coisa que não seja oca e as obrigue a pensar"). Olhando para ele segundo esta perspectiva, "Inferno" em nada desmerece dos seus antecessores campeões de bilheteira. Antes pelo contrário.

Uma história de amigos

O filme confirma o estatuto de Joaquim Leitão como expoente máximo de um certo tipo de cinema nacional, mais "narrativo" e menos "poético" - a distinção e os seus termos são da autoria do próprio realizador, que sempre considerou absurda a dicotomia entre "cinema comercial" e "cinema de autor", pois "todo o cinema é de autor". E isto equivale a dizer que "Inferno" exibe todas as qualidades habitualmente presentes na obra do cineasta - agilidade narrativa, virtuosismo formal, sentido de ritmo -, as quais fazem dele o que, em Portugal, existe de mais parecido com os talentosos artesãos (hoje, espécie em extinção) que contribuíram para a glória da Hollywood do passado.

Aos méritos referidos poderá acrescentar-se ainda a seguríssima direcção de actores, talvez o maior trunfo do filme. Com efeito, o realizador extrai do elenco interpretações notáveis, num grande trabalho colectivo, em que sobressaem as presenças de Júlio César, Nicolau Breyner e Rogério Samora. Fazem parte de um grupo de dez amigos, o centro de "Inferno", ex-combatentes do Ultramar que se reúnem para mais um jantar anual de confraternização. O objectivo? Renovar laços de companheirismo, comemorar a sobrevivência, ou, simplesmente, tentar exorcizar os fantasmas de um passado que teima em não os largar. Porque a memória dos horrores que viveram continua a assombrá-los e a violência que carregam dentro de si apenas espera um escape para se libertar em toda a sua fúria.

E um dos aspectos mais curiosos de "Inferno" é mesmo a forma como a guerra colonial surge em pano de fundo, raramente puxada para primeiro plano, mas com as marcas e cicatrizes deixadas nos protagonistas a estarem subjacentes a tudo. Uma opção que evita discursos demagógicos e aposta na subtileza, a mesma que encontramos no desenho das personagens - credíveis, humanas, profundamente portuguesas, mas sem derrapar em estereótipos - ou na definição da dinâmica do grupo. No espaço fechado de um restaurante e através do acumular de pequenos pormenores, fica tudo dito quanto a cumplicidades, tensões ou diferenças de personalidade.

Um filme de acção "à portuguesa"? Foi um pouco assim que "Inferno" foi apresentado. Existem de facto cenas de acção - nomeadamente, após a mudança de cenário para uma discoteca espanhola, quando os traumas e instintos dos antigos comandos regressam por fim à tona e a tragédia se cumpre -, mas seria redutor pegar apenas nelas. Porque, acima de tudo, o filme de Joaquim Leitão fala de amizade. Como o próprio realizador confessou: "Os meus filmes, de um modo ou de outro, eram histórias de amor. E queria fazer um filme sobre outro sentimento, que para mim é tão intenso como o amor".

O resultado fica como um comovente ensaio sobre masculinidade em queda, retrato de um grupo de homens que, ultrapassados pelo tempo, perderam o lugar no mundo, exibindo, à flor da pele, uma vulnerabilidade emocionante. Mas uma coisa permanece: o apego às virtudes da camaradagem. Por isso, não espanta que no final, conscientes das suas falhas e pecados e do estatuto anacrónico, prefiram sacrificar-se uns pelos outros. Como num filme de Sam Peckinpah.

Sugerir correcção
Comentar